|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Carta sobre o passado e o presente
Não costumo transcrever
mensagens ou cartas que recebo, geralmente cobrando isso
ou aquilo. Abro exceção nesta
sexta-feira, primeiro dia de um
mês que rima com desgosto, para
a leitora de Curitiba, Olaia P. Antunes, por dois motivos: pelo passado, em que ela recorda os dias
amargos de 1964; e pelo presente,
em que ela discorda da crônica
em que considerei honrados todos
os homens do poder, usando ou
abusando do discurso de Marco
Antônio no funeral de César.
Vamos à primeira parte: "Com
o golpe de 64, fui presa, envolvida
no grupo dos Onze de Paranaguá,
sem nunca ter sido brizolista; era,
sim, fervorosa militante do PCB.
No afã de encontrarem provas de
minha participação subversiva, o
IPM da Capitania dos Portos e a
igreja local dos padres redentoristas (norte-americanos) empreenderam campanha diária contra a
minha pessoa e uma investigação
ferrenha, com interrogatórios ridículos, baseados em denúncias
anônimas e em interpretações
imbecis das minhas atitudes anti-americanistas, comunistas e
atéias. Como se fora iminente perigo à segurança do Brasil.
Em meio a esse clima, meu pai,
filho de imigrantes sírios, acostumado a submeter-se ao servilismo
imposto pelos coronéis da terra
(coronelismo não é apanágio do
Nordeste), correu, apavorado, a
enterrar meus livros, no fundo do
quintal, à sombra de um abacateiro, onde minha avó fazia escalpe nos caprinos. Assim, na companhia de George Politzer, Lênin,
Gramsci, Sartre, Beauvoir, Gide,
Camus, entre outros, lá foi você,
no seu "O Ato e o Fato". Como cabia glória aos delatores, não faltou um vizinho "muy amigo",
que presenciou a cena, do alto da
escada dos fundos da casa de sua
sogra e relatou à polícia, o gesto e
o local do crime. Lá foi meu pai
entender-se com o delegado pela
ocultação de provas tão contundentes. E consumiram com meus
livros, como, de certa forma, com
meu emprego, meus ideais, minha luta política, minha vida pessoal. Eu saí chamuscada, os livros, certamente, queimaram,
dado o horror às contagiantes
idéias".
Mudando o nome dos autores
enterrados, a mesma cena foi repetida pelo Brasil afora naqueles
dias. O mais curioso e degradante
nessa história foi o dedo-duro de
plantão, que também havia aos
milhares nas repartições, nas
ruas, nas escolas e hospitais e até
nos quintais onde a avó da missivista escalpelava caprinos.
A segunda parte da carta é
atual. Após citar o dicionário de
Houaiss para a palavra "honrado", a leitora reclama de minha
crônica: "Mas seria o estelionatário eleitoral um homem honrado?
O traidor de idéias e ideais é um
homem honrado? Marco Antônio
chamou Brutus e os assassinos de
César de homens honrados, numa eloquente figura de linguagem, numa mordaz ironia, até
porque seriam estes os novos
mandatários do poder".
Mencionando um jornalista e
um intelectual, ambos do nosso
tempo, a leitora diz que já discutiu com um deles pelo fato de ter
chamado Lula de "intelectual orgânico". E com um outro, recentemente falecido, "por ousar dizer
que Lula era como Machado de
Assis, um despreparado. Diante
de comparações como estas, não
há como calar".
Termina a carta com um parágrafo esclarecedor: "Tudo o que
disse e escrevi é da minha total
responsabilidade e pode ser reproduzido, em qualquer tempo e
local, se tanto merecer ou for necessário".
À margem do que a leitora diz e
escreve, há um pormenor que me
pegou de surpresa, o qual, honestamente, eu ignorava. Tampouco
posso garantir que seja verdadeiro, embora dona Olaia cite uma
fonte. Transcrevo, com a devida
ressalva, o trecho de sua carta:
"Por favor, não desaponte sua leitora da vida inteira, do tempo em
que Lula andava desfilando na
passeata Com Deus pela Liberdade (a "IstoÉ" trouxe essa matéria,
há anos, lógico)".
Se verdadeira, a informação da
leitora e da revista citada é um
dado importante para avaliar a
trajetória política do atual presidente da República. Muita gente
boa, gente honrada, acima de
qualquer suspeita, participou da
passeata que deu pretexto aos militares da época para iniciar o
movimento que nos colocou nos
anos de chumbo, com sua sequela
de prisões, assassinatos, torturas e
banimentos. Evidente que muitos
dos participantes daquela marcha mudaram de lado e enfrentarem perigos e perseguições. Mas,
se verdadeiro o fato, não deixa de
ser um dado importante na biografia de Lula a adesão àquela
passeata que desencadeou o movimento militar de 64, divisor de
águas mais notório do que o AI-5,
que foi apenas o prolongamento
natural e radical do autoritarismo.
De minha parte, sem poder confirmar ou negar o que a leitora
me informa, considero irrelevante o fato de Lula ter marchado
com Deus pela liberdade, em
1964. Considero-o um homem
honrado, "honourable man", sem
o duplo sentido da classificação
que Shakespeare colocou na boca
de Marco Antônio. Mas a história
tem o mau gosto de se repetir e na
própria peça sobre a morte de César há a profecia de Cássio que
tem também um duplo sentido:
"How many ages hence shall this
our lofty scene acted over in states
unborn and accents yet unknown!" ("Em quantas eras futuras será esta nossa nobre cena
reencenada, em Estados ainda
não nascidos e idiomas ainda
desconhecidos!")
Texto Anterior: Outros lançamentos: Underground carioca em CD Próximo Texto: Quadrinhos: Guido Crepax, 70, morre em Milão Índice
|