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São Paulo, sexta-feira, 01 de agosto de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Carta sobre o passado e o presente

Não costumo transcrever mensagens ou cartas que recebo, geralmente cobrando isso ou aquilo. Abro exceção nesta sexta-feira, primeiro dia de um mês que rima com desgosto, para a leitora de Curitiba, Olaia P. Antunes, por dois motivos: pelo passado, em que ela recorda os dias amargos de 1964; e pelo presente, em que ela discorda da crônica em que considerei honrados todos os homens do poder, usando ou abusando do discurso de Marco Antônio no funeral de César.
Vamos à primeira parte: "Com o golpe de 64, fui presa, envolvida no grupo dos Onze de Paranaguá, sem nunca ter sido brizolista; era, sim, fervorosa militante do PCB. No afã de encontrarem provas de minha participação subversiva, o IPM da Capitania dos Portos e a igreja local dos padres redentoristas (norte-americanos) empreenderam campanha diária contra a minha pessoa e uma investigação ferrenha, com interrogatórios ridículos, baseados em denúncias anônimas e em interpretações imbecis das minhas atitudes anti-americanistas, comunistas e atéias. Como se fora iminente perigo à segurança do Brasil.
Em meio a esse clima, meu pai, filho de imigrantes sírios, acostumado a submeter-se ao servilismo imposto pelos coronéis da terra (coronelismo não é apanágio do Nordeste), correu, apavorado, a enterrar meus livros, no fundo do quintal, à sombra de um abacateiro, onde minha avó fazia escalpe nos caprinos. Assim, na companhia de George Politzer, Lênin, Gramsci, Sartre, Beauvoir, Gide, Camus, entre outros, lá foi você, no seu "O Ato e o Fato". Como cabia glória aos delatores, não faltou um vizinho "muy amigo", que presenciou a cena, do alto da escada dos fundos da casa de sua sogra e relatou à polícia, o gesto e o local do crime. Lá foi meu pai entender-se com o delegado pela ocultação de provas tão contundentes. E consumiram com meus livros, como, de certa forma, com meu emprego, meus ideais, minha luta política, minha vida pessoal. Eu saí chamuscada, os livros, certamente, queimaram, dado o horror às contagiantes idéias".
Mudando o nome dos autores enterrados, a mesma cena foi repetida pelo Brasil afora naqueles dias. O mais curioso e degradante nessa história foi o dedo-duro de plantão, que também havia aos milhares nas repartições, nas ruas, nas escolas e hospitais e até nos quintais onde a avó da missivista escalpelava caprinos.
A segunda parte da carta é atual. Após citar o dicionário de Houaiss para a palavra "honrado", a leitora reclama de minha crônica: "Mas seria o estelionatário eleitoral um homem honrado? O traidor de idéias e ideais é um homem honrado? Marco Antônio chamou Brutus e os assassinos de César de homens honrados, numa eloquente figura de linguagem, numa mordaz ironia, até porque seriam estes os novos mandatários do poder".
Mencionando um jornalista e um intelectual, ambos do nosso tempo, a leitora diz que já discutiu com um deles pelo fato de ter chamado Lula de "intelectual orgânico". E com um outro, recentemente falecido, "por ousar dizer que Lula era como Machado de Assis, um despreparado. Diante de comparações como estas, não há como calar".
Termina a carta com um parágrafo esclarecedor: "Tudo o que disse e escrevi é da minha total responsabilidade e pode ser reproduzido, em qualquer tempo e local, se tanto merecer ou for necessário".
À margem do que a leitora diz e escreve, há um pormenor que me pegou de surpresa, o qual, honestamente, eu ignorava. Tampouco posso garantir que seja verdadeiro, embora dona Olaia cite uma fonte. Transcrevo, com a devida ressalva, o trecho de sua carta: "Por favor, não desaponte sua leitora da vida inteira, do tempo em que Lula andava desfilando na passeata Com Deus pela Liberdade (a "IstoÉ" trouxe essa matéria, há anos, lógico)".
Se verdadeira, a informação da leitora e da revista citada é um dado importante para avaliar a trajetória política do atual presidente da República. Muita gente boa, gente honrada, acima de qualquer suspeita, participou da passeata que deu pretexto aos militares da época para iniciar o movimento que nos colocou nos anos de chumbo, com sua sequela de prisões, assassinatos, torturas e banimentos. Evidente que muitos dos participantes daquela marcha mudaram de lado e enfrentarem perigos e perseguições. Mas, se verdadeiro o fato, não deixa de ser um dado importante na biografia de Lula a adesão àquela passeata que desencadeou o movimento militar de 64, divisor de águas mais notório do que o AI-5, que foi apenas o prolongamento natural e radical do autoritarismo.
De minha parte, sem poder confirmar ou negar o que a leitora me informa, considero irrelevante o fato de Lula ter marchado com Deus pela liberdade, em 1964. Considero-o um homem honrado, "honourable man", sem o duplo sentido da classificação que Shakespeare colocou na boca de Marco Antônio. Mas a história tem o mau gosto de se repetir e na própria peça sobre a morte de César há a profecia de Cássio que tem também um duplo sentido: "How many ages hence shall this our lofty scene acted over in states unborn and accents yet unknown!" ("Em quantas eras futuras será esta nossa nobre cena reencenada, em Estados ainda não nascidos e idiomas ainda desconhecidos!")


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