São Paulo, quarta-feira, 01 de agosto de 2007

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MARCELO COELHO

Medalhas? Cansei


Ricos e pobres se alimentam de euforias manipuladas há décadas


COMO TODO mundo, fiquei impressionado com a quantidade de medalhas de ouro ganhas pelo Brasil no Pan. Mas senti falta de outro quadro informativo. Onde estavam os recordes olímpicos quebrados no dia anterior? Não estavam em lugar nenhum.
Nesta segunda-feira, uma reportagem de Paulo Cobos na Folha ajuda a dimensionar melhor o sucesso brasileiro. "Dentre as 12 medalhas de ouro na natação", escreve Cobos, "o único tempo que renderia o topo do pódio na última Olimpíada é o de César Cielo Filho nos 50 m livre". Pior: o as medalhas de ouro no salto com vara e na corrida de 1500 m das mulheres foram conquistadas com marcas abaixo do mínimo necessário para competir nos próximos jogos de Pequim.
Como sempre, quem destacar informações desse tipo tende a ser acusado de estraga-prazeres. Não acho que seja uma questão de rabugice. É até bom que nossas patriotadas se concentrem no âmbito dos esportes.
No regime do general Galtieri, os argentinos estavam certos de que a Inglaterra não reagiria à invasão das Malvinas, e que, se reagisse, o poderio do país platino haveria de esmagar a força naval britânica.
Milhares de argentinos foram mortos devido a essa ilusão; muitos voltaram para casa amputados. E com muitas medalhas também. Felizmente as nossas foram de outro tipo. Será que os argentinos não sabiam no que estavam se metendo? Imagino que sabiam, mas ao mesmo tempo não queriam saber.
É o caso típico de toda manipulação de massas: não se substitui apenas a verdade por uma mentira. O grau de torcida vai chegando a tal ponto, que cada pequeno acontecimento positivo adquire dimensões gigantescas, como se multiplicado pelo número das pessoas que o festejam; evidências no sentido oposto são recalcadas.
Nas transmissões de jogos pela TV, a manipulação faz parte da natureza do negócio. Não há como "relatar" os fatos, mesmo porque tudo está à vista do espectador. Cabe ao locutor -pouco importa se seu nome é Galvão Bueno- animar a torcida e garantir a audiência para os próximos eventos.
As decepções -sabemos disso- acabam chegando; mas não queremos saber. Ainda bem que existe futebol feminino. Quanto à seleção masculina, seus tetras, pentas e hexas, já não tenho ânimo de torcer, sabendo-me manipulado escancaradamente. Seleção brasileira? Sinceramente, para usar o termo da moda, eu cansei.
Aliás, acho que está aí a raiz psicológica do movimento "Cansei", organizado pela OAB e setores de classe média e alta do país. O sentimento de oposição a Lula é evidente nesses setores, mas creio que se traduz de forma peculiar.
Dizer "cansei" não é a mesma coisa que dizer "fora Lula", embora muita gente provavelmente gostasse de derrubá-lo. O que prevalece na frase, mais do que um programa político qualquer, é o espírito do "não brinco mais".
E do que se estava brincando, afinal? Creio que de algo não muito diferente do que se viu na medalhomania do Pan. Trata-se da ficção de um Brasil que está "quase chegando lá", no Primeiro Mundo.
Sem conhecer o cotidiano de trens e ônibus da periferia, o cidadão de classe alta estava acostumado a belos aeroportos; certamente não iguais aos de Frankfurt e Paris, mas afinal a diferença era apenas de grau. São Paulo não é Nova York, mas tem lá suas Daslus e seus musicais copiados da Broadway.
A ilusão foi abalada com a crise aérea. Numa imaginária redoma de Primeiro Mundo, é a própria presença de Lula, mais que seu desempenho, o que mais incomoda. Na política econômica, os ricos lhe devem gratidão. Mas ele não "é do time", como o foram Collor e FHC.
De minha parte, não vou ironizar um movimento só porque é "dos ricos". José Arthur Giannotti desqualificou a invasão da reitoria da USP, classificando suas reivindicações como "pequeno-burguesas". Inércia de linguagem, a meu ver.
O movimento "Cansei" deve ser jugado pelo que propõe. Nesse ponto, nutro expectativas reduzidíssimas, para colocar a coisa em termos educados, quanto ao que João Dória Junior tenha de importante a sugerir para o futuro do país. Mas o seu "cansaço" é mais um sintoma do que uma doença.
Ricos e pobres se alimentam de euforias manipuladas há décadas. Uns se cansam. Outros tiram delas alguma energia para agüentar o tranco. Lula e Galvão Bueno tratam, enquanto isso, de manter a bola rolando.
PS. No artigo da semana passada saiu que Dolfo era avô da personagem Nina, no filme "O Tango de Rashevski". Era tio-avô.

coelhofsp@uol.com.br


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