São Paulo, sábado, 01 de agosto de 2009

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A fantástica fábrica de Murakami

Maior nome da literatura pop japonesa, o escritor Haruki Murakami lança no Brasil "Após o Anoitecer", que retrata seu estilo rebelde

Ilustração Elise Gravel/Shutterstock sobre foto Marion Ettlinger/The Harvill Press sobre ilustração de Elise Gravel/Shutterstock
O escritor japonês Haruki Murakami

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A literatura ensinada nas escolas pode causar repulsa. Se o aluno também tiver o azar supremo de ser o filho do professor, então, o estrago alcança dimensões gigantescas. Mas sempre há exceções. O estilo rebelde de Haruki Murakami, 60, maior best-seller da literatura japonesa, nasceu dessa circunstância, como "Após o Anoitecer", lançado agora no Brasil, ajuda a conferir.
Murakami é uma fábrica de referências pop, como o romance comprova. Este é o seu penúltimo livro -"1Q84", o mais recente, saiu em maio no Japão, com mais de 580 mil exemplares vendidos, e ainda não tem previsão de lançamento no Brasil.
Filho de um professor de literatura japonesa, o escritor muito cedo se apaixonou pelos livros de autores americanos. Contraposta à pompa floreada dos clássicos nipônicos, a linguagem direta de Raymond Chandler, Kurt Vonnegut e Richard Brautigan salvou o garoto da mesmice obrigatória dos tempos de outrora. Sorte de seus leitores de 38 idiomas esparramados pelo mundo.
Essa dedicação à causa das letras ianques trouxe felicidades e dissabores ao escritor japonês. De início mal recebido pelo establishment restrito e purista de seu país, Murakami demorou para estourar. Seu reconhecimento veio através do sucesso de "Norwegian Wood" (de 1987, publicado aqui pela Alfaguara/Objetiva em 2005), romance no qual inaugurou a vertente romântica à que também se alinha "Minha Querida Sputnik" (2001).
Some-se a esse ingrediente açucarado alguns fetiches (como a obsessão que seus personagens masculinos têm por orelhas femininas), além de fartas doses de melancolia, de sexo e de jazz, e pimba: eis a receita dos vira-páginas infernais de Murakami.
Tradutor laborioso, a ficção norte-americana igualmente serviu de oficina ao escritor, que converteu ao japonês J.D. Salinger, Raymond Carver, John Irving e Scott Fitzgerald, entre outros. Essas escolhas dizem muito sobre suas narrativas repletas de clareza vigorosa e coloquial, às vezes aditivadas com elementos fantásticos.

Surrealismo pop
Mostra influência da literatura latino-americana de García Márquez, como parte da crítica costuma diagnosticar? Muito mais provável que o humor sombrio e a mirada quase ingênua de seus narradores tenham vindo do surrealismo pop de Vonnegut e de Brautigan, cujas influências também são percebidas sobre alguns de seus companheiros de geração, tais como Genichiro Takahashi ("Sayonara Gangsters") e Banana Yoshimoto ("Kitchen").
A essas linhas de expressão dos romances e contos de Murakami, do "emo" filosófico de seus repetidos Holdens Caufields em processo de crescimento aos gatos falantes, convergem os pastiches noir bem esquisitos de "Caçando Carneiros" e "Dance Dance Dance" (publicados pela Estação Liberdade), culminando em uma série mais relevante (e ainda não traduzida) de obras-primas, como "The Wind-up Bird Chronicle" (a crônica do pássaro que dá corda, em tradução livre).
É nesses romances (cujo único representante aportado aqui é o inferior "Kafka na Praia") que a visão "alienígena" de Murakami sobre os hábitos e a história do Japão adquire real percuciência.
Ex-professor em Princeton e antigo dono de um bar de jazz (onde escreveu seus primeiros livros), atualmente dividindo seu tempo entre Tóquio e a ilha havaiana de Kauai (a mesma em que é gravada "Lost", série da qual é fã), Murakami também é um dedicado maratonista semiprofissional há mais de 20 anos. Essa experiência é relatada em seu livro de 2008, "What I Talk About When I Talk About Running" (de que falo quando falo em correr, em tradução livre), que a Alfaguara lança por aqui em 2009.
As palmilhas do autor, repletas das marcas de percalços críticos e de pedregulhos, ainda não experimentaram, porém, o "surreality show" à brasileira: quem sabe o futuro não lhe reserva uma tarde de São Silvestre sob chuva ácida e de lá uma esticada até Paraty? Certamente não lhe faltarão ovações.

JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).



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