São Paulo, sábado, 1 de agosto de 1998

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Outras notas das bandas de Aipotú

ALBERTO DINES

Colunista da Folha


Não imaginava tamanho retorno: nesta temporada jamais recebi tantas mensagens. Levaram Aipotú a sério. Está certo, com gozação não se brinca. Não esperava que uma lembrança marginal dentro de uma velha sátira ao utopismo ganhasse vida própria, convertida num projeto de gozação nacional. Com a vantagem da interatividade: os leitores enxergaram mais longe do que o autor e quiseram participar.
Um deles, com nítida bagagem filológica, aferrou-se ao nome. Considerou indevido o acento agudo: se Aipotú é utopia lida ao contrário, não cabe ênfase oxítona. No artigo anterior tive o cuidado de anotar que a acentuação era opcional, não adiantou.
Sugeriu o missivista que eu aprofundasse a transcendental questão do acento -afinal o nome deste utopismo caboclo e às avessas, na véspera do milênio, merece, no mínimo, um simpósio acadêmico. Talvez na UFRJ, onde o alunado, os funcionários e parte do professorado poderiam usar plenamente o seu potencial de avacalhação.
Ilustre professora de literatura mandou e-mail em que fez interessantes elaborações sobre os palíndromos, aquelas palavras lidas ao contrário que assumem significado próprio. Acha que Aipotú é um palíndromo especial porque gerou uma palavra nova e em sentido contrário: charge da utopia, ela própria utopia.
Rápida no gatilho, a Cia. das Letras remeteu-me "A Descoberta do Homem e do Mundo", fascinante coletânea de ensaios sobre o Descobrimento, Renascimento, utopias e matérias afins. Organizada pelo jornalista Adauto Novaes (da equipe montada por Murilo Felisberto e que fez a glória do Departamento de Pesquisas do velho "JB").
Originou-se no primeiro ciclo de conferências da série "Brasil, 500 Anos" (co-edição Minc-Funarte), é a nona coletânea organizada por Adauto Novaes nos mesmos moldes -um evento perenizado em forma de livro.
O conteúdo é desigual (o trabalho de Luís Felipe Alencastro é uma confessada clonagem da obra do português Vitorino Magalhães Godinho, também presente; o de Marilena Chaui é um precioso bordado sobre as fontes espirituais do utopismo). No conjunto, o compêndio oferece um olhar abrangente e estimulante sobre o clima intelectual que envolveu os sonhos idílicos gerados a partir das proezas dos navegadores.
Outro leitor-amigo lembrou a relação Daniel Defoe-Brasil. O prolífico criador da trilogia sobre Robinson Crusoe, além de empresário, soldado, agitador político, espião, poeta e, sobretudo, grande jornalista (considerado o pai das revistas, produziu praticamente sozinho "The Review" de 1704 a 1713) também era fascinado pelo Novo Mundo. Apostava mais nas suas riquezas do que nas do Pacífico, conforme relata Paula R. Backscheider em "Daniel Defoe, a Life" (John Hopkins, 1989).
As aventuras e desventuras do mais celebrado náufrago da literatura mundial são uma projeção autobiográfica e intelectual do autor: Defoe (ou De Foe) foi preso porque não pagou dívidas enquanto Robinson, antes de naufragar, viveu confinado numa plantação brasileira, depois de ter sido escravo de um marroquino. Supõe-se que a ilha onde construiu o solitário paraíso não fosse longe da nossa costa (a imagem de Robinson, vestido com peles de cabra que, há quase três séculos, povoa a imaginação de adultos e crianças, sugere localização meridional).
Sua infeliz experiência brasileira serve de pano de fundo para as reflexões sobre o destino, a condição humana, a equação solidão-liberdade e, sobretudo, para o diálogo entre a humanidade-de-um-homem-só e Deus, paráfrase do episódio bíblico vivido por Jó.
Os outros enxergaram nestas bandas um cenário propício à contemplação. Nós a recusamos, indignados. Existo, logo grito. A baderna da última quarta-feira no centro do Rio contra a privatização do sistema Telebrás é a comprovação de que, quando falham as liminares, resolve-se a polêmica na marra.
Contribuição decisiva para retomar o tema do último artigo veio por meio de um fax -Aipotú, na sátira, era um dossiê em que o personagem-candidato guardava as idéias geniais para resolver os problemas nacionais, mas, na verdade, é o mote para uma nova visão do paraíso (com a devida licença do falecido Sérgio Buarque).
Aipotú é a terra das eternas crianças. Sementeira de Fenômenos -de Ronaldinho a Xuxa. O alarde pelo nascimento da filha da apresentadora de TV é um flagrante do monumental processo de idiotização que está em curso neste país.
A partir da mídia. Culpa-se a Rede Globo, mas na verdade a Rede Globo estabeleceu um padrão de baixos teores que ninguém ousa contestar e todos procuram imitar. Ou caricaturar. Inclusive no jornalismo impresso.
No dia em que o âncora de um telejornal se recusar a noticiar as peripécias deste novo produto chamado Sasha, ou quando um editor de um jornal de prestígio determinar que as andanças das celebridades estarão confinadas às colunas mundanas, poderá ocorrer uma reversão.
Enquanto isso não ocorre, os habitantes de Aipotú terão que acrescentar um novo artefato ao seu kit de sobrevivência -um controle remoto, tipo Bat-Raio, capaz desligar todos os televisores do prédio em frente.
Há um rincão privilegiado em Aipotú: próspero, cosmopolita e intelectualizado. No passado remoto foi dominado por um bando de pioneiros truculentos. Mais recentemente arribou uma espécie de corsário e, como todos, endeusado pelas massas. Ademar de Barros foi derrubado por outro, não muito diferente em matéria de substância: Jânio Quadros.
Décadas depois, os painéis eleitorais deste pedaço de mundo indicam que os preferidos do momento são Francisco Rossi e Paulo Maluf. O mesmo populismo, o mesmo pauperismo, o mesmo paroquialismo -Aipotú não pode parar, por isso não muda.
O bom malandro não berra, mas em Aipotú posa de xerife. Caso da figura que ocupa a presidência da Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier. Chegou ao pináculo do cenáculo dos literatos imortais montado na co-autoria de uma coleção de livros didáticos de matemática (segundo grau). Agora teve um de seus clássicos desqualificados pelo Ministério da Educação. Além disso, foi expelido do Conselho Nacional de Educação, onde apadrinhava as fábricas de canudos que se candidatavam às regalias de universidades.
Por isso, anda escoiceando o governo nas colunas de notas políticas e nas páginas de opinião dos grandes jornais (inclusive desta Folha) sem que ninguém se lembre de perguntar como é que consegue tanta exposição. Ou do que já andou aprontando.
Aipotú é assim. Acho que é muito mais, aguardem.
Nota
Mas reconhecem que sendo oxítona a nova palavra se legitima com sonoridade nativa.



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