São Paulo, quarta-feira, 01 de setembro de 2004

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MARCELO COELHO

Tinhorão

Levei um susto lendo o Mais! de domingo passado. Tinhorão elogiando o rap? O crítico sempre teve opiniões tradicionalistas em matéria de música popular. Mas a excelente entrevista que concedeu a Pedro Alexandre Sanches não dava margem a dúvidas; e, pensando bem, o que ele disse não tem nada de incoerente.
O rap é uma "fala cantada", explica Tinhorão, e "restaura a música da palavra". Menos do que a aparente inovação, assim, o rap se torna interessante pelo que possa significar de volta a um passado, talvez mais autêntico: "O cantochão da igreja era um rap". Com particular irreverência, o crítico prossegue: "Como nasce a música da igreja? O cara ia ler um texto sagrado, ficava monótono, ele passava a ler de uma forma cantada. Nasce o cantochão, que é embolada de padre, é rap de padre".
O mais bonito na entrevista de Tinhorão está nesse jeito de falar. Se o rap é isso ou aquilo, não me arrisco a dizer, mas admiro a enorme liberdade com que o crítico se expressa. Frases espantosas se sucedem. Embora valorize o gênero, Tinhorão acrescenta que "a maior parte desses raps é bronca de otário de periferia, reclamação". Os poetas árcades -todos eles- eram uns chatos. As letras da música popular? Ali o que mais se encontra é "bagulho, bagulho, bagulho, bagulho".
As opiniões de Tinhorão sobre os baianos esbarram no preconceito. Eles são "impressionantes, analfabetos inteligentíssimos. Apanham as coisas no ar com uma grande facilidade, captam e conseguem coisas impressionantes. Já viu Gilberto Gil falando? Esses discursadores do povo, como têm pouca cultura, são pernósticos. Você ouve, aquilo é bonito. Mas, se pára para pensar depois, você diz: "Mas o que ele falou?". Não falou nada de importante".
Eu já vi Gilberto Gil falando -horas e horas falando- e concordo com Tinhorão. Espanta-me, contudo, ver insinuada aqui a volta de uma velha personagem do racismo brasileiro: a figura do "mulato pernóstico", que, assim como do "crioulo doido", a da "nega maluca", o do "negão", a da "boneca de piche", a da "mulata assanhada" etc., já havia sido merecidamente banida da linguagem pública, graças à preocupação com o "politicamente correto".
Lembro também que não é preciso ser baiano, analfabeto ou intuitivo para fazer discursos brilhantes sem conteúdo nenhum. Há pessoas cultas em todos os Estados capazes de muita falação vazia também; em São Paulo, talvez menos -mas não sei se é vantagem produzirmos oradores tão ruins.
Seja como for, a possível incorreção do entrevistado me parece salutar. Tinhorão sempre disse o que pensava, e não é dos que tentam transformar essa atitude em mercadoria de consumo, tema para escândalo barato. Suas frases e opiniões parecem apenas a aresta mais cortante de um longo argumento oculto; a impressão que temos é que com um pouco mais de tempo ele acabaria demonstrando inapelavelmente o acerto de suas teses.
Também gostei de ler a entrevista de Tônia Carrero, publicada nesta segunda-feira. Aos 82 anos, ela declara simplesmente que envelhecer é muito ruim, que Lula "diz besteira, mas não faz besteira", que determinada proposta para controlar o conteúdo dos programas de TV "é uma idiotice" e, quanto aos maridos que teve, "foram muito machistas e me enganaram muito com outras mulheres". Ela completa: "Perdi oportunidades ótimas de fazer o mesmo com eles, burra que sou".
Faz falta uma franqueza dessas. Estamos completamente intoxicados por uma espécie de enjoamento publicitário benigno, em que Maluf, Erundina, Serra e Marta, por exemplo, se mostram todos -e não apenas o candidato do PSDB- como "pessoas do bem". Só a Dra. Havanir, seguindo o modelo de Enéas, encarna o papel de vilã, obviamente sem consistência real.
Claro, não é o caso de exigir verdade e franqueza no horário eleitoral gratuito. Mas o mesmo enjoamento aparece quando um defensor dos direitos humanos diz que não devemos chamar de "mendigos" aqueles que foram assassinados na região da Sé: melhor chamá-los de "povo das ruas" ou coisa parecida.
A palavra "mendigo" seria preconceituosa? Isso é confundir demais as coisas. Acho absurdo dizer que a condição de mendigo merece respeito e é uma ocupação tão digna quanto qualquer outra. O que merece respeito é a condição humana, e a mendicância, assim como a sujeira, a miséria, a doença etc., representa uma afronta a essa condição.
O que ocorre com o politicamente correto -e também com o seu inverso, a provocação vulgar- é que não se confia mais num espaço de discussão em que as pessoas possam dizer o que pensam, ser criticadas por isso e em seguida retomar ou corrigir os seus pontos de vista. O discurso público, hoje em dia, tem de ser "bonzinho", vacinado de antemão contra todas as críticas possíveis, ou então artificialmente "malvado", para destacar-se mercadologicamente da mesmice dominante. Nos dois casos, trata-se de evitar qualquer surpresa, qualquer mal-entendido na comunicação.
Uma espécie de Conar -o organismo da auto-regulamentação publicitária- está em vigor indiretamente nas falas de quase todo mundo, pois tanto esquerda quanto direita se inspiram no sentimentalismo televisivo e numa ocultação adocicada da verdade.
Casos como os de Tinhorão e de Tônia Carrero talvez sejam espantosos, atualmente, porque provêm de uma época em que, para bem ou para mal, a fonte do discurso público era a opinião pessoal, a conversa privada. Hoje, mesmo na intimidade, quando falamos a nós mesmos, nossa linguagem é a de quem faz propaganda de automóvel ou de banco. Logo as pessoas vão deixar de reclamar do horário eleitoral gratuito. A mentira publicitária vai estar tão incorporada ao cotidiano que teremos a impressão de que todos os candidatos só dizem a verdade.


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