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MARCELO COELHO
Tinhorão
Levei um susto lendo o Mais!
de domingo passado. Tinhorão elogiando o rap? O crítico
sempre teve opiniões tradicionalistas em matéria de música popular. Mas a excelente entrevista
que concedeu a Pedro Alexandre
Sanches não dava margem a dúvidas; e, pensando bem, o que ele
disse não tem nada de incoerente.
O rap é uma "fala cantada", explica Tinhorão, e "restaura a música da palavra". Menos do que a
aparente inovação, assim, o rap
se torna interessante pelo que
possa significar de volta a um
passado, talvez mais autêntico:
"O cantochão da igreja era um
rap". Com particular irreverência, o crítico prossegue: "Como
nasce a música da igreja? O cara
ia ler um texto sagrado, ficava
monótono, ele passava a ler de
uma forma cantada. Nasce o cantochão, que é embolada de padre,
é rap de padre".
O mais bonito na entrevista de
Tinhorão está nesse jeito de falar.
Se o rap é isso ou aquilo, não me
arrisco a dizer, mas admiro a
enorme liberdade com que o crítico se expressa. Frases espantosas
se sucedem. Embora valorize o gênero, Tinhorão acrescenta que "a
maior parte desses raps é bronca
de otário de periferia, reclamação". Os poetas árcades -todos
eles- eram uns chatos. As letras
da música popular? Ali o que
mais se encontra é "bagulho, bagulho, bagulho, bagulho".
As opiniões de Tinhorão sobre
os baianos esbarram no preconceito. Eles são "impressionantes,
analfabetos inteligentíssimos.
Apanham as coisas no ar com
uma grande facilidade, captam e
conseguem coisas impressionantes. Já viu Gilberto Gil falando?
Esses discursadores do povo, como têm pouca cultura, são pernósticos. Você ouve, aquilo é bonito. Mas, se pára para pensar depois, você diz: "Mas o que ele falou?". Não falou nada de importante".
Eu já vi Gilberto Gil falando
-horas e horas falando- e concordo com Tinhorão. Espanta-me, contudo, ver insinuada aqui
a volta de uma velha personagem
do racismo brasileiro: a figura do
"mulato pernóstico", que, assim
como do "crioulo doido", a da
"nega maluca", o do "negão", a
da "boneca de piche", a da "mulata assanhada" etc., já havia sido merecidamente banida da linguagem pública, graças à preocupação com o "politicamente correto".
Lembro também que não é preciso ser baiano, analfabeto ou intuitivo para fazer discursos brilhantes sem conteúdo nenhum.
Há pessoas cultas em todos os Estados capazes de muita falação
vazia também; em São Paulo, talvez menos -mas não sei se é
vantagem produzirmos oradores
tão ruins.
Seja como for, a possível incorreção do entrevistado me parece
salutar. Tinhorão sempre disse o
que pensava, e não é dos que tentam transformar essa atitude em
mercadoria de consumo, tema
para escândalo barato. Suas frases e opiniões parecem apenas a
aresta mais cortante de um longo
argumento oculto; a impressão
que temos é que com um pouco
mais de tempo ele acabaria demonstrando inapelavelmente o
acerto de suas teses.
Também gostei de ler a entrevista de Tônia Carrero, publicada
nesta segunda-feira. Aos 82 anos,
ela declara simplesmente que envelhecer é muito ruim, que Lula
"diz besteira, mas não faz besteira", que determinada proposta
para controlar o conteúdo dos
programas de TV "é uma idiotice" e, quanto aos maridos que teve, "foram muito machistas e me
enganaram muito com outras
mulheres". Ela completa: "Perdi
oportunidades ótimas de fazer o
mesmo com eles, burra que sou".
Faz falta uma franqueza dessas.
Estamos completamente intoxicados por uma espécie de enjoamento publicitário benigno, em
que Maluf, Erundina, Serra e
Marta, por exemplo, se mostram
todos -e não apenas o candidato do PSDB- como "pessoas do
bem". Só a Dra. Havanir, seguindo o modelo de Enéas, encarna o
papel de vilã, obviamente sem
consistência real.
Claro, não é o caso de exigir verdade e franqueza no horário eleitoral gratuito. Mas o mesmo enjoamento aparece quando um defensor dos direitos humanos diz
que não devemos chamar de
"mendigos" aqueles que foram
assassinados na região da Sé: melhor chamá-los de "povo das
ruas" ou coisa parecida.
A palavra "mendigo" seria preconceituosa? Isso é confundir demais as coisas. Acho absurdo dizer que a condição de mendigo
merece respeito e é uma ocupação
tão digna quanto qualquer outra.
O que merece respeito é a condição humana, e a mendicância,
assim como a sujeira, a miséria, a
doença etc., representa uma
afronta a essa condição.
O que ocorre com o politicamente correto -e também com o
seu inverso, a provocação vulgar- é que não se confia mais
num espaço de discussão em que
as pessoas possam dizer o que
pensam, ser criticadas por isso e
em seguida retomar ou corrigir os
seus pontos de vista. O discurso
público, hoje em dia, tem de ser
"bonzinho", vacinado de antemão contra todas as críticas possíveis, ou então artificialmente
"malvado", para destacar-se
mercadologicamente da mesmice
dominante. Nos dois casos, trata-se de evitar qualquer surpresa,
qualquer mal-entendido na comunicação.
Uma espécie de Conar -o organismo da auto-regulamentação publicitária- está em vigor
indiretamente nas falas de quase
todo mundo, pois tanto esquerda
quanto direita se inspiram no
sentimentalismo televisivo e numa ocultação adocicada da verdade.
Casos como os de Tinhorão e de
Tônia Carrero talvez sejam espantosos, atualmente, porque
provêm de uma época em que,
para bem ou para mal, a fonte do
discurso público era a opinião
pessoal, a conversa privada. Hoje,
mesmo na intimidade, quando
falamos a nós mesmos, nossa linguagem é a de quem faz propaganda de automóvel ou de banco.
Logo as pessoas vão deixar de reclamar do horário eleitoral gratuito. A mentira publicitária vai
estar tão incorporada ao cotidiano que teremos a impressão de
que todos os candidatos só dizem
a verdade.
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