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CARLOS HEITOR CONY
Da arte de caçar rolinhas nos quintais baldios
Outro dia, num desses questionários que as companhias de seguro nos mandam, havia uma
pergunta que me pareceu inútil:
quais os esportes que eu praticara? Já havia respondido, na pergunta anterior, que atualmente
meu único esporte é andar pela
Lagoa. Mas ao longo da existência pratiquei outros, com alguma
assiduidade, principalmente o futebol, do qual guardo saudades e
cicatrizes. Pensei um pouco e me
indaguei se devia colocar a caça
de rolinhas, afinal era uma caça, e
caça foi esporte durante séculos e
ainda o é entre as nobres gentes.
Bem verdade que para caçar rolinhas não se usavam cavalos, armas, palafreneiros, cães farejadores e trompas. Nem os quintais do
Lins de Vasconcelos eram ricos de
caça. Na verdade, ali só se podiam
caçar rolinhas, e as havia, e muitas.
Com o tempo, o que começou
como esporte virou safadeza, e
das grossas. Explico e lembro: para caçar rolinhas era preciso, além
das rolinhas, uma bacia, um pedaço de pau, um barbante bem
comprido, um punhado de milho,
uma moita de capim ou de qualquer outra vegetação equivalente,
e um companheiro -pois caçar
rolinha sozinho era chato. E além
de chato, inútil, pois nada se fazia
com as rolinhas caçadas.
Tudo era fácil de arranjar, mas
o item principal era o companheiro. Tinha de ser, acima de tudo,
dócil. E em dose igual, complacente. E, se não fosse ingênuo, tinha
de fingir que o era. Mesmo assim,
naquele tempo a oferta era farta,
pois havia muitos meninos que
eram dóceis, complacentes e, por
isso ou aquilo, fingiam a ingenuidade tão bem que às vezes eram
ingênuos mesmo.
O esporte, como qualquer outro,
tinha regras. Um mandava, outro
obedecia. Em geral, o dono da bacia, do barbante e do punhado de
milho era o dono. Sua sabedoria
consistia em escolher o campo da
pugna em que haveria dois adversários: a rolinha e o companheiro.
Até ali, o mais importante podia
ser a rolinha que na certa viria,
tentada pelo milho farto que se
oferecia na sombra maternal da
bacia. A partir de certo ponto, a
rolinha deixava de ser prioritária.
Testava-se o companheiro com
mil artifícios. De início, ele parecia não entender, aos poucos começava a compreender para o
que estava ali, de bruços, a cara
encostada na terra, sem se poder
mover, pois qualquer movimento
poderia ""assustar as rolinhas", e
aí nunca mais seria convocado
para a caça das mesmas.
Escolhido o local (eu já tinha alguns sítios testados e outros que
poderia usar em casos emergenciais), colocava a bacia apoiada
no toco de pau, ao qual amarrava
o barbante comprido. Esparramava o milho na sombra gostosa
que a bacia fazia no chão.
Com perícia que adquiri rapidamente, ia levando o barbante
para trás da moita, que precisava
ter dois requisitos fundamentais:
dar visão à bacia que ficava à
frente e não dar nenhuma visão a
quem ficasse atrás. Era importante ver (a bacia) e não ser visto (por
ninguém).
Armado o cenário, o tempo fazia o resto. Deitava-se ao lado do
companheiro, obrigando-o não
apenas ao silêncio, mas à imobilidade. Ficavam a cargo do dono
da brincadeira os lances seguintes, que eram exatamente os mais
sutis. Qualquer precipitação poderia assustar não apenas as rolinhas, mas o companheiro.
Como nas guerras de verdade,
precisava-se antes de mais nada
da aproximação justa. Aníbal viera de tão longe, deixara Cartago,
pulara para a Espanha, fundara
Barcelona, atravessara os Alpes
com seus imensos elefantes africanos, acampou em Cápua e se deliciou antes do tempo, achando que
já tinha dominado a orgulhosa
Roma e a possuído com a força de
seu desejo. Foi talvez o caso mais
notável de ejaculação precoce na
história humana.
Qualquer bobeira poderia estragar o caldo. Após os golpes preliminares, em que o companheiro
volta e meia servia de apoio para
que o dono do brinquedo tivesse
visão melhor da bacia, anunciava-se a hora da hora. Com voz
baixa, soprada, descrevia-se o panorama geral da refrega: ""Pronto... chegou uma rolinha... está
querendo entrar... vai entrar... fique quieto, não se mexa... ela vai
entrar... está olhando... agora...
olhou para o lado... vai entrar...".
Com a cara enterrada no chão,
o companheiro nem respirava para não espantar a rolinha. Compreendia que era o momento culminante de sua colaboração, de
sua passividade iria depender o
sucesso da caça. De tanto servir de
apoio ao dono do brinquedo, o
companheiro habituara-se. Nada
demais que, na hora decisiva, ele
ficasse quieto, suportando o peso e
a perícia de quem iria desfechar o
golpe fatal.
Passava-se um tempo em que os
dois respiravam juntos, e cada
qual compreendia o outro. Até
que o dono, para consolar o companheiro, deixava-o puxar o barbante. A bacia caía e prendia a rolinha. Os dois então corriam, muitas vezes nem tinha rolinha embaixo, o dono tinha o direito de
reclamar: ""Você bobeou, não soube puxar o barbante". E para garantir uma segunda vez, prometia: ""Amanhã vamos ver se você
acerta...".
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