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"Toda arte é política", diz Lisette Lagnado
Às vésperas da Bienal, curadora fala sobre a mostra como "suspensão do cotidiano"
Curadora cita o conceito de Crelazer, de Hélio Oiticica; "não vai ser preciso pensar nas guerras ou no 11 de Setembro o tempo inteiro"
FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL
Em meio à correria da montagem da 27ª Bienal de São
Paulo, que será aberta para
convidados na próxima quinta
e para o público no sábado, a
curadora Lisette Lagnado, responsável geral da mostra, não
parece estressada. "Estou fortalecida com os artistas à minha volta", diz à Folha. Até a
última quinta, poucas obras,
dos mais de cem artistas que
irão expor no pavilhão, já estavam montadas. Entre elas, o
maior orgulho de Lagnado
eram os trabalhos de Gordon
Matta-Clark (1943-1978), que
sua viúva, Jane Crawford,
montava para a exposição, entre eles "Dumpster Duplex",
uma imensa caçamba, cuja parte interna é montada como
uma casa para "sem-teto", obra
de 1972. Artista radical, que introduziu novos modos de subverter contextos urbanos e sociais, além de propor novas experiências artísticas, Matta-Clark é um dos ícones da Bienal "Como Viver Junto", que
trata toda arte como política, e
privilegia o contexto para sua
observação, como defende a
curadora a seguir.
FOLHA - A Bienal anterior foi organizada sob o princípio de que a arte é
um campo autônomo, um território
livre. Sua Bienal é oposta a esse conceito e trata de como a arte se aproxima da política. Isso não pode ser
um problema, já que as obras podem se tornar ilustração de questões políticas?
LISETTE LAGNADO - Eu diria que
essa não é uma Bienal mais política, porque toda a arte é política, mesmo a que estava na
Bienal passada. Mas esta é uma
Bienal que pensa que a arte tem
uma relação muito forte com o
contexto e, aí, ela realmente se
torna política. A importância
do contexto é tamanha que estamos mostrando vários trabalhos de cada artista, para mostrá-lo também no contexto de
sua produção, e não só o contexto do lugar de onde ele vem,
como o que ocorre com os artistas que fizeram residência no
Acre, Recife e São Paulo. Isso
tudo é uma discussão política, é
claro, porque quando se fala de
um contexto, o artista não está
fechado em um ateliê.
FOLHA - Desses contextos, já que é
uma mostra internacional, em quais
deles a política se faz mais presente?
LAGNADO - Eu penso, obviamente, na África e no Oriente
Médio. Dos países da América,
o Mario Navarro, por exemplo,
vai mostrar um Opala, que era o
carro que seqüestrava as pessoas no regime Pinochet. Fiquei um pouco surpresa, nas
minhas viagens, com o fato de
que havia um teor político muito mais forte, até em lugares
que eu achava que isso não estaria presente. É claro que a política está mais presente em
países como a Grécia e a Turquia, que têm fronteiras complicadas, ou França e Alemanha, por conta dos imigrantes.
FOLHA - Assim, sua Bienal procura
ser mais reflexiva do que um evento
voltado ao entretenimento?
LAGNADO - Sim, mas também
não. E aí eu lembro muito o Oiticica e seu conceito de Crelazer, de que a arte pode ser uma
espécie de suspensão do cotidiano. Há momentos na mostra
que são momentos de suspensão, não vai ser preciso pensar
nas guerras ou no 11 de Setembro o tempo inteiro. Acho que a
arte deve propiciar também
momentos de descanso e evasão. Tenho a impressão que a
mostra vai ter seu lado prazeroso, sua beleza estética.
FOLHA - Você partiu de conceitos
do Hélio Oiticica, dos anos 60 e 70,
para criar o projeto desta Bienal. Em
que medida, após a seleção de artistas e a montagem dos trabalhos,
aquelas idéias podem ser observadas na produção contemporânea?
LAGNADO - Acho que a primeira
vez que tive esse "feeling" foi
quando entrei em contato com
o trabalho do Rirkrit Tiravanija, porque eu via aquele sujeito
fazendo proposições para se ficar junto, cozinhando e eu lembrava disso como uma proposição para "Parangolé-área". Então, foi aí que de fato comecei a
achar que o Hélio tinha sido visionário, no sentido que, na década seguinte, em 80, quando
ele morre, há a volta à pintura,
de certa forma à mercantilização da arte, e isso ele nunca
imaginava. Ele caminhava para
algo mais voltado ao que fazia o
Gordon Matta-Clark, de intervenções urbanas. Em meados
dos anos 90, vimos proposições
como a do Rirkrit serem usadas
por vários artistas e ele se tornou um ícone, mas eu achava
que o Hélio faltava nessa bibliografia. O que ele conceituou é o
que está acontecendo e o primeiro fenômeno mais direto,
que demonstra isso, é o Rirkrit.
FOLHA - Mas a arte, e nesse caso a
Bienal, não pode ser como um espaço experimental de como viver junto? Não era isso, afinal, que o Hélio
Oiticica propunha?
LAGNADO - Eu diria que o conceito de Hélio, mais próximo de
sua pergunta, seria o de Crelazer. Acontece paralelamente
com a preparação de "Éden"
para Whitechapel (1969) e aí o
artista já quer implantar uma
nova prática de vida, pautada
por uma percepção criativa da
parte dos indivíduos e um forte
sentido de participação coletiva. A "Cama-Bólide" é um dos
exemplos mais emblemáticos;
ou então sentir na planta do pé
a textura da areia, a temperatura da água, o barulho da palha.
Mas vamos combinar que estas
experiências sensoriais faziam
sentido dentro daquele contexto de descoberta do corpo livre,
etc. Viver junto hoje não pode
ser traduzido literalmente.
Quais são nossas questões do
agora? O último pronunciamento do papa? Não sei. O que
resta do Crelazer é uma crítica
à sociedade do espetáculo, a um
lazer ativo e não passivo.
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