São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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"Toda arte é política", diz Lisette Lagnado

Às vésperas da Bienal, curadora fala sobre a mostra como "suspensão do cotidiano"

Curadora cita o conceito de Crelazer, de Hélio Oiticica; "não vai ser preciso pensar nas guerras ou no 11 de Setembro o tempo inteiro"

FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em meio à correria da montagem da 27ª Bienal de São Paulo, que será aberta para convidados na próxima quinta e para o público no sábado, a curadora Lisette Lagnado, responsável geral da mostra, não parece estressada. "Estou fortalecida com os artistas à minha volta", diz à Folha. Até a última quinta, poucas obras, dos mais de cem artistas que irão expor no pavilhão, já estavam montadas. Entre elas, o maior orgulho de Lagnado eram os trabalhos de Gordon Matta-Clark (1943-1978), que sua viúva, Jane Crawford, montava para a exposição, entre eles "Dumpster Duplex", uma imensa caçamba, cuja parte interna é montada como uma casa para "sem-teto", obra de 1972. Artista radical, que introduziu novos modos de subverter contextos urbanos e sociais, além de propor novas experiências artísticas, Matta-Clark é um dos ícones da Bienal "Como Viver Junto", que trata toda arte como política, e privilegia o contexto para sua observação, como defende a curadora a seguir.

 

FOLHA - A Bienal anterior foi organizada sob o princípio de que a arte é um campo autônomo, um território livre. Sua Bienal é oposta a esse conceito e trata de como a arte se aproxima da política. Isso não pode ser um problema, já que as obras podem se tornar ilustração de questões políticas?
LISETTE LAGNADO
- Eu diria que essa não é uma Bienal mais política, porque toda a arte é política, mesmo a que estava na Bienal passada. Mas esta é uma Bienal que pensa que a arte tem uma relação muito forte com o contexto e, aí, ela realmente se torna política. A importância do contexto é tamanha que estamos mostrando vários trabalhos de cada artista, para mostrá-lo também no contexto de sua produção, e não só o contexto do lugar de onde ele vem, como o que ocorre com os artistas que fizeram residência no Acre, Recife e São Paulo. Isso tudo é uma discussão política, é claro, porque quando se fala de um contexto, o artista não está fechado em um ateliê.

FOLHA - Desses contextos, já que é uma mostra internacional, em quais deles a política se faz mais presente?
LAGNADO
- Eu penso, obviamente, na África e no Oriente Médio. Dos países da América, o Mario Navarro, por exemplo, vai mostrar um Opala, que era o carro que seqüestrava as pessoas no regime Pinochet. Fiquei um pouco surpresa, nas minhas viagens, com o fato de que havia um teor político muito mais forte, até em lugares que eu achava que isso não estaria presente. É claro que a política está mais presente em países como a Grécia e a Turquia, que têm fronteiras complicadas, ou França e Alemanha, por conta dos imigrantes.

FOLHA - Assim, sua Bienal procura ser mais reflexiva do que um evento voltado ao entretenimento?
LAGNADO
- Sim, mas também não. E aí eu lembro muito o Oiticica e seu conceito de Crelazer, de que a arte pode ser uma espécie de suspensão do cotidiano. Há momentos na mostra que são momentos de suspensão, não vai ser preciso pensar nas guerras ou no 11 de Setembro o tempo inteiro. Acho que a arte deve propiciar também momentos de descanso e evasão. Tenho a impressão que a mostra vai ter seu lado prazeroso, sua beleza estética.

FOLHA - Você partiu de conceitos do Hélio Oiticica, dos anos 60 e 70, para criar o projeto desta Bienal. Em que medida, após a seleção de artistas e a montagem dos trabalhos, aquelas idéias podem ser observadas na produção contemporânea?
LAGNADO
- Acho que a primeira vez que tive esse "feeling" foi quando entrei em contato com o trabalho do Rirkrit Tiravanija, porque eu via aquele sujeito fazendo proposições para se ficar junto, cozinhando e eu lembrava disso como uma proposição para "Parangolé-área". Então, foi aí que de fato comecei a achar que o Hélio tinha sido visionário, no sentido que, na década seguinte, em 80, quando ele morre, há a volta à pintura, de certa forma à mercantilização da arte, e isso ele nunca imaginava. Ele caminhava para algo mais voltado ao que fazia o Gordon Matta-Clark, de intervenções urbanas. Em meados dos anos 90, vimos proposições como a do Rirkrit serem usadas por vários artistas e ele se tornou um ícone, mas eu achava que o Hélio faltava nessa bibliografia. O que ele conceituou é o que está acontecendo e o primeiro fenômeno mais direto, que demonstra isso, é o Rirkrit.

FOLHA - Mas a arte, e nesse caso a Bienal, não pode ser como um espaço experimental de como viver junto? Não era isso, afinal, que o Hélio Oiticica propunha?
LAGNADO
- Eu diria que o conceito de Hélio, mais próximo de sua pergunta, seria o de Crelazer. Acontece paralelamente com a preparação de "Éden" para Whitechapel (1969) e aí o artista já quer implantar uma nova prática de vida, pautada por uma percepção criativa da parte dos indivíduos e um forte sentido de participação coletiva. A "Cama-Bólide" é um dos exemplos mais emblemáticos; ou então sentir na planta do pé a textura da areia, a temperatura da água, o barulho da palha. Mas vamos combinar que estas experiências sensoriais faziam sentido dentro daquele contexto de descoberta do corpo livre, etc. Viver junto hoje não pode ser traduzido literalmente. Quais são nossas questões do agora? O último pronunciamento do papa? Não sei. O que resta do Crelazer é uma crítica à sociedade do espetáculo, a um lazer ativo e não passivo.


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