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FERNANDO GABEIRA
Au au au pra você, nesta data querida
"Sorria, você está na Barra". É a
frase que você vê quando sai do
túnel e entra nesse bairro para onde se estendeu a ocupação da zona sul do Rio. Shoppings centers,
hospitais modernos, nomes em inglês e, nos últimos tempos, uma
estátua da Liberdade, simbolizando o fascínio que exerce sobre
ela o modelo norte-americano.
Tudo transmite opulência, mas o
cheiro nem sempre é bom. A Barra da Tijuca foi se construindo cada vez com mais luxo, mas fracassou num fundamento básico: não
tem saneamento. Suas lagoas estão morrendo; sufocadas por toneladas de esgoto, já perderam a
capacidade líquida de absorver
tanta matéria orgânica.
O biólogo Mário Moscateli, um
batalhador na salvação dos manguezais, monitora águas da baixada de Jacarepaguá e frequentemente lança dramáticos S.O.S,
que só cessarão mesmo com a presença de um emissário submarino
que possa despejar no mar águas
tratadas pelos menos duas vezes.
A Barra da Tijuca tem alto índice de edifícios inteligentes. Um arquiteto dizia para mim: "Como
podem ser inteligentes edifícios
cercados por águas apodrecendo?" Minha única explicação é
que esse tipo de visão de mundo
tende a reduzir a inteligência à
sua dimensão artificial. Os computadores não conseguem analisar as variáveis sociais e ecológicas. Inteligente, de um ponto de
vista concreto, não virtual, seria
compreender o pedaço do litoral
que se estava ocupando e sua relação com a cidade no seu conjunto.
A Barra tem um alto índice de
carros por habitante. Dizem que
um por um, mas jamais vi uma
pesquisa que comprovasse isso.
Mas é razoável admitir que o nível seja alto. Tão alto que seus
acessos ficam congestionados e
agora há um projeto de se abrir
um novo túnel no morro Dois Irmãos, intervindo com violência
na paisagem.
Um modo de vida parecido com
o norte-americano, apesar de minoritário, acaba definindo os rumos de uma das mais belas cidades do mundo, transformando-a
numa espécie de vítima do suicídio cultural de sua elite econômica. A maioria prefere manter a
paisagem e, no lugar de túnel, um
bom sistema de transporte coletivo, para desafogar o trânsito.
A idéia de se construir uma
Miami tropical, perpassada pelo
ocasional mau cheiro cortando a
fantasia como uma lâmina da
realidade, não explica, mas introduz bem a festa de aniversário de
uma cadela, cuja dona é uma das
ricaças do bairro.
Num país onde ainda há tanta
crueldade contra os animais, um
gesto de carinho é sempre bem recebido. No entanto, a opulência e
humanização dos bichos seria até
aceitável se não estivéssemos num
pais onde animalizam as pessoas,
muitas delas sentindo-se verdadeiras vira-latas, quando comparam pela TV sua pobreza com o
luxo de certas vidas de cão.
Substituíram a letra do parabéns para você e no seu lugar cantaram au au au au au au au. Estava meio distraído quando apareceram cantando na TV e aquilo
me impressionou. Tudo o que vinha pensando sobre a Barra apareceu para mim com uma trilha
sonora que dramatizava minhas
intuições.
Pensei nos arqueólogos que visitarem nossas ruínas daqui a muitos séculos. Vão se espantar com o
tamanho dos quartos de empregada. Se acharem vestígios do luxo canino, aí então vão se surpreender mais.
Mas, na verdade, todo aquele
au au au estava um pouco contra
a corrente. A questão da miséria
entrou na agenda política. Até o
FMI mencionou o tema. Existe
uma compreensão melhor da urgência de combater a fome e, certamente, será um dos debates
mais importantes da próxima
eleição presidencial.
A própria Barra será envolvida
nessa nova visão. O sonho americano acabará despertando para a
realidade brasileira e aí nossa vida vai correr mais suave, com o
morro no seu lugar, as águas límpidas do Atlântico, e pessoas cantando parabéns para outras pessoas. Usando, de preferencia, a
linguagem humana, onde se desdobra o pensamento, singularidade da nossa espécie.
Não quero que entendam como
um protesto. O ideal era não comentar estilos de vida. Mas partilhamos da mesma paisagem.
Nossos destinos estão entrelaçados, as balas perdidas cruzam os
ares, as lagoas estão morrendo.
Essa festa tem de acabar logo: os
docinhos caem na ponte e caímos
todos na realidade.
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