São Paulo, quarta-feira, 01 de novembro de 2006

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MARCELO COELHO

A roupa nova do povo


A imagem que prevalece hoje nada tem a ver com ascensão do proletariado ao poder


QUANDO TERMINOU o governo JK, em 1961, Nelson Rodrigues escreveu uma crônica estranhamente elogiosa, citada por Ruy Castro em "O Anjo Pornográfico" (Cia. das Letras). Reproduzo um trecho do que o dramaturgo escrevia sobre Juscelino: "Ninguém mais antipresidencial. Ele trouxe a gargalhada para a Presidência. Os outros presidentes têm sempre a rigidez de quem ouve o Hino Nacional. Cada qual se comporta como se fosse a estátua de si mesmo. Não Juscelino."
Nelson Rodrigues menciona, em seguida, uma foto famosa de JK ao lado de uma beldade de Hollywood. "Quando ele tirou os sapatos para Kim Novak (que achado genial! que piada miguelangelesca!), ele foi o antipresidente, uma espécie de cafajeste dionisíaco. Eu diria que jamais alguém foi tão brasileiro."
O elogio prossegue, na característica mistura rodriguiana entre o prosaico e o delirante. "Eu poderia falar em Furnas, Três Marias, estradas, Brasília, indústria automobilística. Mas não é isso que importa. Amigos, o que importa é o que Juscelino fez do homem brasileiro. Deu-lhe uma nova e violenta dimensão interior. A partir de Juscelino, surge um novo brasileiro."
Tirando os sapatos ao lado de Kim Novak, Juscelino parecia manter, aos olhos de quem vê a foto hoje em dia, certa graça palaciana. Sua lepidez, sua brejeirice, nada mais têm de miguelangelesco ou de dionisíaco. As fotos de Lula jogando bola sem camisa, na Granja do Torto, correspondem melhor a esses adjetivos e seria difícil imaginar que tipo de comentário inspirariam no autor de "Toda Nudez Será Castigada".
As razões para a vitória de Lula neste segundo turno já foram apresentadas, discutidas e repetidas exaustivamente. O que me parece ainda sob o foco das disputas ideológicas, mesmo dentro do PT, é o significado, a simbologia da reeleição. Sinal dessa disputa é a frase de Tarso Genro, comemorando "o fim da era Palocci", como se o novo mandato de Lula viesse a marcar a ruptura que não ocorreu em 2002.
Seria também o fim do predomínio do PT paulista, das cataduras antipáticas de Zé Dirceu e seus companheiros? Já ouvi lorotas demais para acreditar em qualquer coisa proveniente de Brasília, mas não é irrelevante saber que tipo de auto-engano, que tipo de versão dos fatos mobiliza os ocupantes do poder.
As eleições teriam, desse ponto de vista, promovido um reencontro de Lula com "a força do povo". No último debate, quando lhe perguntaram sobre saneamento básico, Lula fez uma lista emocionada de diversos bairros onde morou, periodicamente assolados por inundações.
Populismo? O termo tem um significado historicamente preciso: tratava-se de manipular a organização sindical a partir do Estado para impedir seu domínio pelo Partido Comunista; uma política de inclusão das massas urbanas aos benefícios da industrialização, que dependia de altos índices de crescimento econômico, de leis trabalhistas e de um sistema previdenciário cuja abrangência não era universal.
Nada disso sobrevive; entrou em crise nos anos anteriores a 64. O PT era antipopulista, na verdade, ao rejeitar a tutela do Estado sobre os sindicatos e ao defender uma democracia radicalizada, "de baixo para cima", antipática à velha imagem getulista do "pai dos pobres". Nada disso, no PT, sobrevive tampouco.
A idéia de um Lula "filho do povo" se acentua, paradoxalmente, na medida em que a campanha eleitoral exacerbou os preconceitos de classe a seu respeito. No primeiro mandato, Lula e Marisa foram personagens de "Caras" coreografados por Duda Mendonça. Hoje, prevalece outra imagem. Nada tem a ver com uma ascensão do proletariado ao poder, nem mesmo com uma abstrata reinvenção jusceliniana do "homem brasileiro". O que se transmite é uma curiosa mistura de inocência popular e pragmatismo administrativo, de astúcia e rusticidade, de matreirice delfiniana e emocionalismo neopentecostal, de peemedebismo reciclado com estética de "Big Brother Brasil".
Temos então o presidente sincero, que "quer trabalhar" e que "não sabia de nada", que "merece continuar". Tão desinformado e puro, portanto, quanto seu eleitor.
Mas cabe o adendo: ninguém é puro nem desinformado nos dias que correm. Numa caricatura dos velhos ideais de "esclarecimento das massas" e de "conscientização do proletariado", o "não saber de nada", a sinceridade e a inconsciência são, hoje, uma forma de esperteza e de cuidar dos próprios interesses. Não é populismo nem telenovela; é "reality show", com o povo na Globo de novo.


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