São Paulo, sexta-feira, 01 de dezembro de 2000

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CARLOS HEITOR CONY
Censura atrapalha, mas não impede a arte

Volto ao assunto da semana anterior. A censura, como instituição e prática, deve ser criticada e combatida, sempre e de forma permanente. Assim como o primeiro dever do prisioneiro é tentar fugir, é da obrigação de todos os censurados escapar da degola imposta pelo Estado ou pela sociedade. Isso vale, sobretudo, para a classe dos artistas, dos criadores, na qual, evidentemente, não pretendo me incluir, pois não passo de um operário do inútil ofício das letras.
Nem por isso, contudo, a censura pode ser responsabilizada pela entressafra cultural que a comunidade humana periodicamente atravessa. É cômodo atribuir a mediocridade da produção artística à censura, mas a história desmente essa desculpa -uma das mais esfarrapadas que conheço.
Sob censura, muitas das maiores obras universais foram feitas. Parece até um paradoxo, mas, em períodos de recessão ideológica, política ou religiosa, o gênio se sente instigado e produz. Evidente que me refiro a gênio, como Cervantes, que começou a escrever sua novela na prisão.
Dante estava exilado de Florença quando começou o poema que é considerado uma das cinco maiores obras da literatura universal. André de Chénier, o maior poeta da Revolução Francesa, foi parar na guilhotina.
Gosto de citar dois exemplos de como a censura, condenável como arma repressora do pensamento, é um desafio que obriga o criador, seja ele filósofo, artista ou boêmio, a pensar duas vezes antes de produzir. Pensar duas vezes não significa cautela, mas esforço em se superar por meio do pensamento, da arte ou do tipo de vida que se pretende levar.
O primeiro exemplo, talvez o mais emblemático, foi o de Verdi, no início de sua carreira. A Itália, dividida em reinos, tinha vários donos, um dos quais era a Áustria, que dominava a Lombardia. Os patriotas italianos queriam unificar o país, fazer da Casa de Savóia a dinastia que reinaria sobre o país, dos Alpes à Sicília.
Com a vitória de Napoleão em Marengo, o norte da Itália estava sob domínio estrangeiro, inicialmente da França, mais tarde, após o Congresso de Viena, da Áustria, que impunha sua força militar, econômica e cultural, controlando o pensamento do povo dominado.
Como todos os artistas daquele tempo, Verdi submetia seus projetos à censura austríaca. Teve cinco tentativas negadas pelas autoridades, chegou a pensar em desistir de compor óperas, todos os seus enredos eram condenados. Até que sugeriu uma ópera sobre Nabucodonosor, o tirano que manteve o povo judeu no longo e sofrido cativeiro da Babilônia. Como se tratava de episódio que vinha relatado na Bíblia, que a católica Áustria respeitava acima de tudo, o projeto foi aprovado.
Somente na estréia da ópera os censores e militares austríacos perceberam a mosca que haviam comido. Verdi aproveitou o tema do cativeiro para compor um dos hinos mais estimulantes da luta pela liberdade de um povo. Inspirado naquele bonito salmo do profeta Davi ("Junto aos rios da Babilônia nos juntávamos e lembrávamos de ti, oh Sião"), Verdi compôs o coro mais famoso da lírica universal. Quando o "Va pensiero" começou a ser cantado no palco do Scala de Milão, a platéia se levantou. Os generais da Áustria, no camarote central, foram vaiados, o estopim da revolta contra o jugo estrangeiro acabara de ser aceso.
O coro tornou-se o hino da liberdade, até hoje é cantado em todas as partes do mundo como um convite à luta contra a opressão.
O nome de Verdi transformou-se numa palavra de ordem para a unificação italiana, que Cavour e Garibaldi tornariam vitoriosa. ""Viva Verdi" significava ""Viva Vítor Emanuel, re di Italia", um anagrama que passou a ser escrito nos muros, nas paredes das casas dos patriotas, senha de luta contra o cativeiro. Vítor Emanuel era o titular da Casa de Savóia e seria o símbolo da Itália que nascia para a história moderna.
A lição que podemos tirar do episódio é que o artista deve ser maior do que a censura. Foi o caso, em contexto mais recente, de Jean-Paul Sartre, que escreveu duas de suas peças mais importantes num momento em que a França estava ocupada pelos nazistas.
Aqui no Brasil, tanto durante o Estado Novo (1937-1945) como no regime militar de 1964 a 1985, tivemos dois dos períodos mais fecundos de nossa produção cultural e artística. Aproveitam-se as brechas abertas pela ignorância dos censores. Portinari, por exemplo, conseguiu gritar a nossa pobreza, mostrar a dominação que sofríamos. Drummond trabalhava no ministério da Educação, cantou a resistência de Stalingrado e o homem do povo Charles Spencer Chaplin. Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado escreveram parte importante de suas obras durante o período da ditadura getulista.
E, no comprido túnel do mais recente totalitarismo militar, tivemos a explosão de movimentos como o cinema novo, a música de protesto, o teatro e a literatura não engajados ideologicamente, mas comprometidos com a abertura do regime. A obrigação do artista é ser maior do que a circunstância.


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