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CARLOS HEITOR CONY
Censura atrapalha, mas não impede a arte
Volto ao assunto da semana anterior. A censura, como instituição e prática, deve ser
criticada e combatida, sempre e
de forma permanente. Assim como o primeiro dever do prisioneiro é tentar fugir, é da obrigação
de todos os censurados escapar da
degola imposta pelo Estado ou
pela sociedade. Isso vale, sobretudo, para a classe dos artistas, dos
criadores, na qual, evidentemente, não pretendo me incluir, pois
não passo de um operário do inútil ofício das letras.
Nem por isso, contudo, a censura pode ser responsabilizada pela
entressafra cultural que a comunidade humana periodicamente
atravessa. É cômodo atribuir a
mediocridade da produção artística à censura, mas a história desmente essa desculpa -uma das
mais esfarrapadas que conheço.
Sob censura, muitas das maiores obras universais foram feitas.
Parece até um paradoxo, mas, em
períodos de recessão ideológica,
política ou religiosa, o gênio se
sente instigado e produz. Evidente que me refiro a gênio, como
Cervantes, que começou a escrever sua novela na prisão.
Dante estava exilado de Florença quando começou o poema que
é considerado uma das cinco
maiores obras da literatura universal. André de Chénier, o maior
poeta da Revolução Francesa, foi
parar na guilhotina.
Gosto de citar dois exemplos de
como a censura, condenável como arma repressora do pensamento, é um desafio que obriga o
criador, seja ele filósofo, artista ou
boêmio, a pensar duas vezes antes
de produzir. Pensar duas vezes
não significa cautela, mas esforço
em se superar por meio do pensamento, da arte ou do tipo de vida
que se pretende levar.
O primeiro exemplo, talvez o
mais emblemático, foi o de Verdi,
no início de sua carreira. A Itália,
dividida em reinos, tinha vários
donos, um dos quais era a Áustria, que dominava a Lombardia.
Os patriotas italianos queriam
unificar o país, fazer da Casa de
Savóia a dinastia que reinaria sobre o país, dos Alpes à Sicília.
Com a vitória de Napoleão em
Marengo, o norte da Itália estava
sob domínio estrangeiro, inicialmente da França, mais tarde,
após o Congresso de Viena, da
Áustria, que impunha sua força
militar, econômica e cultural,
controlando o pensamento do povo dominado.
Como todos os artistas daquele
tempo, Verdi submetia seus projetos à censura austríaca. Teve
cinco tentativas negadas pelas
autoridades, chegou a pensar em
desistir de compor óperas, todos
os seus enredos eram condenados.
Até que sugeriu uma ópera sobre
Nabucodonosor, o tirano que
manteve o povo judeu no longo e
sofrido cativeiro da Babilônia.
Como se tratava de episódio que
vinha relatado na Bíblia, que a
católica Áustria respeitava acima
de tudo, o projeto foi aprovado.
Somente na estréia da ópera os
censores e militares austríacos
perceberam a mosca que haviam
comido. Verdi aproveitou o tema
do cativeiro para compor um dos
hinos mais estimulantes da luta
pela liberdade de um povo. Inspirado naquele bonito salmo do
profeta Davi ("Junto aos rios da
Babilônia nos juntávamos e lembrávamos de ti, oh Sião"), Verdi
compôs o coro mais famoso da lírica universal. Quando o "Va
pensiero" começou a ser cantado
no palco do Scala de Milão, a platéia se levantou. Os generais da
Áustria, no camarote central, foram vaiados, o estopim da revolta
contra o jugo estrangeiro acabara
de ser aceso.
O coro tornou-se o hino da liberdade, até hoje é cantado em
todas as partes do mundo como
um convite à luta contra a opressão.
O nome de Verdi transformou-se numa palavra de ordem para a
unificação italiana, que Cavour e
Garibaldi tornariam vitoriosa.
""Viva Verdi" significava ""Viva
Vítor Emanuel, re di Italia", um
anagrama que passou a ser escrito nos muros, nas paredes das casas dos patriotas, senha de luta
contra o cativeiro. Vítor Emanuel
era o titular da Casa de Savóia e
seria o símbolo da Itália que nascia para a história moderna.
A lição que podemos tirar do
episódio é que o artista deve ser
maior do que a censura. Foi o caso, em contexto mais recente, de
Jean-Paul Sartre, que escreveu
duas de suas peças mais importantes num momento em que a
França estava ocupada pelos nazistas.
Aqui no Brasil, tanto durante o
Estado Novo (1937-1945) como no
regime militar de 1964 a 1985, tivemos dois dos períodos mais fecundos de nossa produção cultural e artística. Aproveitam-se as
brechas abertas pela ignorância
dos censores. Portinari, por exemplo, conseguiu gritar a nossa pobreza, mostrar a dominação que
sofríamos. Drummond trabalhava no ministério da Educação,
cantou a resistência de Stalingrado e o homem do povo Charles
Spencer Chaplin. Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de
Queiroz e Jorge Amado escreveram parte importante de suas
obras durante o período da ditadura getulista.
E, no comprido túnel do mais
recente totalitarismo militar, tivemos a explosão de movimentos
como o cinema novo, a música de
protesto, o teatro e a literatura
não engajados ideologicamente,
mas comprometidos com a abertura do regime. A obrigação do
artista é ser maior do que a circunstância.
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