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CONTARDO CALLIGARIS
O novo espetáculo do projeto Dança Comunidade
Estreou no fim de semana
passado, no Sesc Pinheiros, o
novo espetáculo do projeto Dança
Comunidade, "Milágrimas", dirigido e concebido por Ivaldo Bertazzo (com a assistência de Inês
Bogéa que, aliás, é também crítica da Folha).
Como se sabe, o corpo de dança
é constituído por jovens da periferia paulistana que se tornaram
dançarinos num longo processo
de descoberta de sua relevância e,
por que não, de sua beleza.
Saindo da pré-estréia, na quinta-feira passada, um amigo lançou a pergunta: "Será que apreciaríamos o espetáculo da mesma
forma se não levássemos em conta a história do projeto e a origem
dos dançarinos?".
É uma pergunta clássica na história da crítica de arte. Ela surge,
por exemplo, quando se trata de
arte naïf, arte primitiva ou arte
bruta (ou "incomum", como é
chamada a arte produzida por
sujeitos excluídos do ambiente
cultural e, como dizia Dubuffet,
"denunciados pela polícia ou pelos psiquiatras como anti-sociais
ou desprovidos de cidadania").
Será que gostaríamos da ingenuidade de um quadro naïf se seu
autor fosse um intelectual integrado? Será que nos extasiaríamos diante de uma máscara africana feita pelo aluno de uma faculdade de belas-artes? Será que a
obra de Arthur Bispo do Rosário
nos impressionaria se ele não tivesse passado boa parte de sua vida num manicômio (a colônia Juliano Moreira)? Será que as obras
de Adolf Wölfli nos tocariam se
ele não tivesse vivido a infância
longe da escola, dois anos na prisão e o resto de seu tempo no hospital Waldau, perto de Berna?
Uma pergunta similar pode ser
levantada para muitas produções
da arte contemporânea. Pense
nos parangolés de Hélio Oiticica
(hoje pendurados em museus e
exposições, embora fossem feitos
para serem vestidos e desfraldados, justamente, na dança). Pois
bem, se não levássemos em conta
a intenção de Oiticica e a credibilidade que lhe é conferida por sua
vida, será que um parangolé, com
a variedade de seus tons e de suas
cores, seria mais interessante que
um pulôver de Missoni?
Seja como for, volto à pergunta
de meu amigo. Minha resposta é:
sim, a história do projeto Dança
Comunidade é crucial para apreciar "Milágrimas". Mas não se
trata de uma atenuante condescendente do tipo "Sou menos exigente por se tratar de jovens da
periferia": em "Milágrimas", a
origem e a vida concreta dos dançarinos são parte integrante da
obra. É isso que quero mostrar.
"Milágrimas" é, grosso modo,
dividido em três momentos coreográficos e musicais (a direção musical é de Arthur Nestrovski, articulista da Folha, e Benjamin
Taubkin). Há um primeiro momento de dança, batucada e canto africanos, um segundo momento que é o mundo dos sobrados e dos mocambos (o século 19)
e um terceiro momento que são os
dias de hoje. A trilha musical do
segundo e do terceiro momentos
inclui "restos" africanos em temas modernos e contemporâneos. Mas há também um quarto
momento, que é o próprio balé,
em seu conjunto.
Para explicar, sirvo-me da observação de uma amiga para
quem as coreografias do segundo
e terceiro momentos seriam inadaptadas aos jovens de Dança
Comunidade, como se, na "sofisticação" de uma balé mais clássico (embora moderno, claro), os
corpos dos jovens dançarinos perdessem um pouco de sua força e
de sua presença. Ela teria preferido só dança africana com canto
"a capela". Respondo como segue.
O corpo é, para nós, um objeto
constante de nostalgia. Perdemos,
se é que conhecemos alguma vez,
o prazer de ter (ou, melhor ainda,
de ser) um corpo. Nosso corpo trabalha, treina, malha, é um instrumento erótico, mas é raro que ele
expresse aquela "poesia geral da
ação" que, como escrevia Paul
Valéry, é própria da dança. É que,
para nós, o modelo da ação não é
o movimento, mas a decisão, a escolha "subjetiva" (como se a subjetividade pouco ou nada tivesse
a ver com o corpo). Por isso contemplamos com admiração (e inveja) o jogo dos músculos dos
grandes felinos na savana ou dos
"selvagens" nus e idealmente felizes na liberdade de seus gestos. E
acontece que nossos desfavorecidos são os herdeiros dos "selvagens" que foram trazidos, comprados e vendidos como se fossem
puros corpos.
Ivaldo Bertazzo poderia ter nos
presenteado apenas com uma
dança africana, que nos encantaria devolvendo espírito e subjetividade aos corpos cujo espírito e
subjetividade foram negados.
Mas "Milágrimas" é mais que
isso. "Milágrimas" é uma pequena história do corpo, a história
pela qual os corpos africanos (primeiro momento) se perderam e se
transformaram, deixando restos
e rastros nos corpos da vida moderna e contemporânea (segundo
e terceiro momentos).
Nessa história, o próprio balé é
o quarto momento: o tempo do
resgate do corpo perdido e subjugado. O projeto Dança Comunidade é parte integrante da obra
porque a transformação dos jovens em dançarinos prova que os
corpos que a modernidade excluiu e domesticou podem dançar, ou seja, ter alma sem deixar
de ser corpos. O que acarreta duas
esperanças: que possamos idealizar corpos que não sejam só de felinos e de "selvagens" e que possamos, um dia, todos dançar.
@ - ccalligari@uol.com.br
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