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TRÉPLICA
Idéias fora do tempo
LUCIANO TRIGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A obra "One and Three
Chairs", do artista plástico norte-americano
Joseph Kosuth, é emblemática
do movimento chamado arte
conceitual. Ela consiste de uma
cadeira, da fotografia da mesma
cadeira e da ampliação fotográfica da definição do dicionário
de uma cadeira. O artista propunha à audiência a questão:
em qual das três está a verdadeira identidade da cadeira? Na
coisa em si, na representação
ou na descrição verbal?
É uma obra intrigante, que
traz para o território da arte
questões associadas à linguagem e à comunicação. O problema é que, como os ready-made
de Marcel Duchamp dos quais é
herdeira, a arte conceitual é datada. Parte de seu sentido e valor não pode ser dissociada do
ano (no caso de Kosuth, 1965) e
do contexto de sua produção.
Repetir esse tipo de proposta
hoje é tão anacrônico quanto
imitar a pintura acadêmica
pré-impressionista.
Duchamp se interessava
mais pela idéia do objeto artístico do que pela sua execução e
pelo produto final. Essa "arte
como idéia" abriu caminhos inteiramente novos (nas primeiras décadas do século passado)
para a experimentação. Mal
comparando, Duchamp teve
um impacto nas artes plásticas
semelhante ao que a obra de James Joyce (não por acaso sua
contemporânea) teve na literatura. Também gerou, é verdade, empulhação e impostura.
A arte conceitual estabeleceu, entre outras premissas,
que a arte se realiza numa idéia;
que a matéria-prima da arte é a
linguagem; que não existe separação entre arte e teoria da arte;
que a atividade artística consiste na investigação sobre a natureza da própria arte; que a arte
é uma forma de linguagem. Tudo muito interessante. Para a
época. E mais interessante como teoria do que por seus resultados. Só sobre a questão de
a arte ser ou não uma linguagem existe uma bibliografia
imensa (e inconclusiva), mais
relevante para a semiótica do
que para a própria arte.
Sintomaticamente, Kosuth
produziu uma vasta obra ensaística sobre teoria da arte e
sobre o papel do artista na sociedade. Levou adiante um debate necessário sobre a relação
entre a estética e a representação, radicalizando questões de
linguagem propostas por Duchamp e, mais tarde, por René
Magritte, que com seu famoso
"Ceci N'Est Pas une Pipe"
(1928) introduziu um paradoxo
lingüístico essencial ao desenvolvimento da arte conceitual.
Ora, o percurso que começa
em Duchamp passa por Magritte e atinge sua realização radical na arte conceitual dos anos
60 e 70 (este é um recorte, é claro que existem outros) é um
dos capítulos mais fascinantes
da arte do século 20. Mas é apenas um capítulo, que já foi escrito e virou história.
Reduzir a arte à expressão de
uma boa idéia (a "arte Caninha
51" de que fala Ferreira Gullar)
tem um preço: como uma boa
piada, a boa idéia só tem graça
na primeira vez. Não fosse assim, a idéia das cadeiras de Kosuth poderia ser reproduzida
"ad infinitum", com outros objetos (ele repetiu o modelo com
uma marreta e uma capa de
chuva, sem sucesso).
Essas propostas deixaram de
ser vanguarda há muito tempo.
Insistir nelas 40 anos depois,
num contexto cultural radicalmente diferente, é irrelevante.
Mais uma vez, mal comparando, seria como se prevalecesse
entre os escritores de hoje o
compromisso com a experimentação lingüística de Joyce
(que, com seus herdeiros, também constituiu um capítulo
fascinante da literatura do século 20, mas que não representou, de forma alguma, a linha de
chegada da literatura). Graças a
Deus isso não aconteceu, e a literatura seguiu caminhos plurais. Imaginem, por exemplo,
se toda poesia fosse concreta.
PS. Este espaço seria destinado a uma resposta ao jornalista
Marcos Augusto Gonçalves e ao
sr. Moacir dos Anjos. Mas, como um e outro deram razão à
minha tese de que qualquer
questionamento da arte contemporânea é recebido com pedradas, preferi utilizá-lo para
desenvolver novas idéias. Mesmo assim, alguns esclarecimentos são necessários:
1) O título do meu primeiro
artigo era "Será arte?", citação
de um poema do Ferreira Gullar, mas a Folha preferiu pinçar uma frase do texto -uma
prática jornalística comum,
mas acabou atraindo atenção
desmedida para um detalhe lateral. O que não muda o fato de
que não afirmei, em momento
algum, que todos os artistas são
movidos pela busca da fama e
de dinheiro, mas sim questionei o sucesso como critério de
qualidade num sistema de arte
mercantilizado;
2) A tentativa de desqualificação do outro é o recurso mais
pobre de um debate. Em todas
as respostas (já foram três), os
articulistas omitem os pontos
relevantes para me atribuir
coisas que não escrevi e intenções que não tive. E evitam, sugestivamente, dar sua opinião
sobre a orelha implantada no
braço e o cachorro que morre
de fome, duas obras de arte citadas em meu artigo;
3) A reação ao meu artigo, fora das páginas da Ilustrada, foi
muito mais plural. Recebi
mensagens estimulantes de
centenas de pessoas interessadas em arte e de diversos artistas, entre eles, Adriana Varejão, Antonio Veronese e Julia
Cseko, para citar os mais conhecidos. Eles leram minhas
idéias sem antolhos, e entendem que qualquer discussão
sobre arte contemporânea, potencialmente infinita, só tem
graça se houver diálogo, e não
troca de ofensas;
4) Por fim, não pretendi generalizar, mas sim falar de uma
tendência recorrente em galerias. Em 1961, Piero Manzoni
defecou em 90 latinhas, assinadas e numeradas, e as vendeu a
peso de ouro, batizando a obra
de "Merda d'Artista". Era um
ataque frontal e um comentário irônico ao mercantilismo da
arte e à idéia, moderna no mau
sentido, de que não há limites
para a arte, de que a arte está
em toda parte, de que tudo é arte. Mais de 40 anos depois, parece que a mensagem não foi
compreendida, e a arte se mercantilizou de vez, premiando
com freqüência a mediocridade. E ai de quem apontar o dedo para isso.
LUCIANO TRIGO é jornalista e editor de livros
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