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São Paulo S/A
Livro "Paranoia", coleção clássica de poemas de Roberto Piva com fotografias de Wesley Duke Lee, traça o primeiro retrato maldito da metrópole na era das revoluções industrial e sexual da década de 60
Divulgação
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São Paulo em fotografia de Wesley Duke Lee feita para ilustrar os versos de Roberto Piva em "Paranoia", livro de poesias lançado em 1963 e reeditado agora
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
Fazia febre na praça da República. Chá de anfetaminas na
cabeça, a embriaguez de chumbo das alamedas cinzentas, Roberto Piva retratou uma São
Paulo maldita em "Paranoia".
Quase 50 anos e algumas
quadras do centro separam a
atmosfera em que surgiram os
versos da reedição que está
agora nas livrarias. Lançados
em 1963, os poemas de Piva
atravessaram a ditadura esquecidos e ressurgiram depois com
um ar de choque, ainda fresco
nos volteios beatniks das letras.
Eram um retorno à metrópole que arrebatou Mário de Andrade nos anos 20 acelerado
por drogas, veneno e pelo sexo
fácil da revolução erótica de
Allen Ginsberg, William Burruoughs e toda a geração beat.
Wesley Duke Lee, artista que
fotografou a cidade para ilustrar os versos de "Paranoia",
acabara de voltar de uma temporada nos Estados Unidos, reforçando a ponte entre São
Paulo e o caldeirão lisérgico dos
escritores norte-americanos.
De sua casa na Major Sertório, no centro da cidade, Piva
saía pelas ruas com o amigo numa Romizetta, carrinho que
chama de "manifesto vanguardista ambulante". Duke Lee retratou em preto e branco a estridência polifônica dos versos.
Surgia nas imagens e nos textos uma cidade em convulsão:
as "pombas crucificadas" da
praça da República, o "brilho
platônico" dos postes na rua
Aurora, as "lacerações dos garotos no Ibirapuera angélico".
"Eram os lugares por onde a
gente andava", lembra o escritor. "O livro é um clássico porque poetiza momentos fugazes
de uma determinada época."
Tanto que hoje Piva não sai
de seu apartamento na Canuto
do Val, a algumas quadras do
centro tumultuado que deu
graça aos versos reunidos em
"Paranoia". "Agora não tem
mais nada, não sobrou nada",
diz Piva, 72. "Tinha um vento
sagrado, mas acabou, tudo virou um lixo urbano horroroso."
Não que fosse idílica a São
Paulo dos anos 60. Ele lembra a
violência que recrudescia, o
choque dos costumes no limiar
da ditadura, operários escravizados nas fábricas, a volúpia escusa do baixo meretrício -tudo
filtrado pelas lentes róseas e
sombrias dos alucinógenos.
Piva engata um "Miles Davis
a 150 quilômetros por hora",
um "Chet Baker ganindo na vitrola", e faz as mesmas viagens
dos beats da época. Fala em
"correrias de maconha", "narcóticos santos", "memórias de
arsênico", "chá com pervitin".
Boca de mil dentes
E a cidade, já vista por Mário
de Andrade como a "grande boca de mil dentes", ganha feições
hiperbólicas, entre um futurismo tardio e paragens sexualizadas. Surgem "locomotivas uivando", "Cadillacs sem sangue". No lugar dos "arranha-céus valentes" de Andrade, Piva
vê uma selva de "arranha-céus
de carniça". A "garoa cinza" engrossa num "céu de cimento".
Fica só a mesma torpeza. Da
"emaranhada forma humana
corrupta da vida", nos versos do
modernista, Piva destaca as
"putas com a noite passeando
em torno de suas unhas".
Talvez pela crueza, tenha sido relegado ao "silêncio total"
esse livro. "Éramos muito malvistos porque fazíamos orgias,
tínhamos horizontes bem mais
amplos", lembra Piva. "É o que
existe, havia mesmo esse pansexualismo freudiano girando
em torno da gente."
Piva traduz isso nos versos.
Fala em "bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos", lembra
seu "abraço plurissexual", os
meninos que tiveram os "testículos espetados pela multidão".
Parece evocar ao mesmo
tempo a sexualidade discreta
do norte-americano Walt
Whitman, que no século 19 disfarçou sob tintas ufanistas um
amor por homens e mulheres, e
a lascívia explícita de Allen
Ginsberg, seu contemporâneo.
"Eles fizeram uma revolução
sexual, poética e erótica", diz
Piva. "Eu fazia algo parecido."
Mas, além do sexo marginal,
da velocidade artificial das drogas, "Paranoia" é um mergulho
em São Paulo, seus trancos e
barrancos, do Tietê entranhado por Mário de Andrade à boca do lixo e seus galpões fabris.
Entre os modernos, os beats
brasileiros e a geração atual, a
cidade mantém o cinza padrão.
São "torres chumbo", "constelação de cinza", "uma saudade
metálica" e as "almas inoxidáveis flutuando sobre a estação
das angústias suarentas".
"O livro poetiza
momentos fugazes de
uma determinada época"
ROBERTO PIVA,
escritor
"Éramos malvistos
porque fazíamos orgias,
tínhamos horizontes
amplos"
IDEM
PARANOIA
Autor: Roberto Piva
Editora: Instituto Moreira Salles
Quanto: R$ 60 (208 págs.)
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