São Paulo, sábado, 02 de janeiro de 2010

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São Paulo S/A

Livro "Paranoia", coleção clássica de poemas de Roberto Piva com fotografias de Wesley Duke Lee, traça o primeiro retrato maldito da metrópole na era das revoluções industrial e sexual da década de 60

Divulgação
São Paulo em fotografia de Wesley Duke Lee feita para ilustrar os versos de Roberto Piva em "Paranoia", livro de poesias lançado em 1963 e reeditado agora

SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

Fazia febre na praça da República. Chá de anfetaminas na cabeça, a embriaguez de chumbo das alamedas cinzentas, Roberto Piva retratou uma São Paulo maldita em "Paranoia".
Quase 50 anos e algumas quadras do centro separam a atmosfera em que surgiram os versos da reedição que está agora nas livrarias. Lançados em 1963, os poemas de Piva atravessaram a ditadura esquecidos e ressurgiram depois com um ar de choque, ainda fresco nos volteios beatniks das letras.
Eram um retorno à metrópole que arrebatou Mário de Andrade nos anos 20 acelerado por drogas, veneno e pelo sexo fácil da revolução erótica de Allen Ginsberg, William Burruoughs e toda a geração beat. Wesley Duke Lee, artista que fotografou a cidade para ilustrar os versos de "Paranoia", acabara de voltar de uma temporada nos Estados Unidos, reforçando a ponte entre São Paulo e o caldeirão lisérgico dos escritores norte-americanos.
De sua casa na Major Sertório, no centro da cidade, Piva saía pelas ruas com o amigo numa Romizetta, carrinho que chama de "manifesto vanguardista ambulante". Duke Lee retratou em preto e branco a estridência polifônica dos versos. Surgia nas imagens e nos textos uma cidade em convulsão: as "pombas crucificadas" da praça da República, o "brilho platônico" dos postes na rua Aurora, as "lacerações dos garotos no Ibirapuera angélico".
"Eram os lugares por onde a gente andava", lembra o escritor. "O livro é um clássico porque poetiza momentos fugazes de uma determinada época." Tanto que hoje Piva não sai de seu apartamento na Canuto do Val, a algumas quadras do centro tumultuado que deu graça aos versos reunidos em "Paranoia". "Agora não tem mais nada, não sobrou nada", diz Piva, 72. "Tinha um vento sagrado, mas acabou, tudo virou um lixo urbano horroroso."
Não que fosse idílica a São Paulo dos anos 60. Ele lembra a violência que recrudescia, o choque dos costumes no limiar da ditadura, operários escravizados nas fábricas, a volúpia escusa do baixo meretrício -tudo filtrado pelas lentes róseas e sombrias dos alucinógenos. Piva engata um "Miles Davis a 150 quilômetros por hora", um "Chet Baker ganindo na vitrola", e faz as mesmas viagens dos beats da época. Fala em "correrias de maconha", "narcóticos santos", "memórias de arsênico", "chá com pervitin".

Boca de mil dentes
E a cidade, já vista por Mário de Andrade como a "grande boca de mil dentes", ganha feições hiperbólicas, entre um futurismo tardio e paragens sexualizadas. Surgem "locomotivas uivando", "Cadillacs sem sangue". No lugar dos "arranha-céus valentes" de Andrade, Piva vê uma selva de "arranha-céus de carniça". A "garoa cinza" engrossa num "céu de cimento".
Fica só a mesma torpeza. Da "emaranhada forma humana corrupta da vida", nos versos do modernista, Piva destaca as "putas com a noite passeando em torno de suas unhas".
Talvez pela crueza, tenha sido relegado ao "silêncio total" esse livro. "Éramos muito malvistos porque fazíamos orgias, tínhamos horizontes bem mais amplos", lembra Piva. "É o que existe, havia mesmo esse pansexualismo freudiano girando em torno da gente." Piva traduz isso nos versos.
Fala em "bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos", lembra seu "abraço plurissexual", os meninos que tiveram os "testículos espetados pela multidão". Parece evocar ao mesmo tempo a sexualidade discreta do norte-americano Walt Whitman, que no século 19 disfarçou sob tintas ufanistas um amor por homens e mulheres, e a lascívia explícita de Allen Ginsberg, seu contemporâneo.
"Eles fizeram uma revolução sexual, poética e erótica", diz Piva. "Eu fazia algo parecido." Mas, além do sexo marginal, da velocidade artificial das drogas, "Paranoia" é um mergulho em São Paulo, seus trancos e barrancos, do Tietê entranhado por Mário de Andrade à boca do lixo e seus galpões fabris. Entre os modernos, os beats brasileiros e a geração atual, a cidade mantém o cinza padrão. São "torres chumbo", "constelação de cinza", "uma saudade metálica" e as "almas inoxidáveis flutuando sobre a estação das angústias suarentas".

"O livro poetiza momentos fugazes de uma determinada época"
ROBERTO PIVA,
escritor

"Éramos malvistos porque fazíamos orgias, tínhamos horizontes amplos"
IDEM


PARANOIA

Autor: Roberto Piva
Editora: Instituto Moreira Salles
Quanto: R$ 60 (208 págs.)


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