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O presidente, a estagiária e as manchas no vestido
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Chegamos a um momento na
história da humanidade em
que a principal questão é saber
se um homem, o presidente dos
Estados Unidos, fez amor com
uma jovem mulher, estagiária
na Casa Branca.
Para um velho escritor polonês, que viveu os horrores do
nazismo e, depois disso, a lenta
agonia do socialismo real, todo
esse debate, no fundo, é um
bom sinal.
Ele desdenha os críticos da
sociedade de consumo e diz: no
fundo, quase todos os povos
pobres sonham com essa abundância material. O pavor de
certos filósofos é a aspiração
das grandes massas.
No tempo do fascismo, reflete, os italianos produziram um
romance em que uma família
judia era obrigada a deixar
sua quadra de tênis. Vivíamos
sob o impacto de uma feroz repressão e dizíamos: "Então é
isso o fascismo, perder sua
quadra de tênis?".
Guardadas as proporções,
creio que o mundo se volta para os Estados Unidos e pergunta: "Então é esse o problema,
saber se Clinton e Monica se
encontraram secretamente, se
houve penetração, se as manchas no vestido azul-marinho
são mesmo de esperma?".
Reduzir os fatos a essas perguntas significa reduzir também os norte-americanos a um
clichê confortante: puritanos,
levemente infantis, preocupados se alguém faz amor por cima, por baixo, se cospe ou engole.
O drama que hoje envolve a
Casa Branca talvez seja melhor entendido se examinarmos as transformações na figura do homem público e na
importância crescente do espetáculo na política.
Vivemos um momento em
que grande parte dos gestos
políticos se faz para a mídia.
Profissionais são contratados
com a missão de ensinar os políticos a ganharem seu espaço.
Eles se derramam em confissões íntimas, abrem suas casas,
mostram a família e os animais domésticos, revelam seus
refúgios de férias, intervenções
cirúrgicas e coleções de selos.
Transparência total.
Todos sabemos que a total
transparência não existe, que,
até certo ponto, permanecemos
um mistério até para nossos
íntimos. No entanto, políticos
e opinião pública jogam esse
jogo. Projeta-se neles um ideal
de inteligência e comportamento que, no fundo, sabemos
ser muito raro nas pessoas
reais, de carne e osso.
Espera-se que um presidente
da República seja monogâmico. Pensa-se desta forma: ora,
pessoalmente, não sou monogâmico, mas, se alguém se candidata a presidente, tem de ser,
pois quem trai a própria mulher também trairá seus compromissos.
Os candidatos a presidente
sabem dessas exigências e procuram ser discretos. No passado, desfrutavam uma certa
cumplicidade da mídia. Se
Kennedy fosse submetido à caçada implacável que se faz a
Clinton, talvez tivesse entrado
na história mais pelas suas
aventuras sexuais do que por
sua performance como presidente.
A opinião pública, sequiosa
por verdade e transparência,
impõe um limite preliminar:
quem não for monogâmico
saia do páreo. Não há espaço
para grandes lances de sinceridade uma vez que a fronteira
está previamente delimitada: é
preciso ser fiel à própria mulher, antes de ser fiel a si mesmo.
Creio que a iniciativa de rocar o tema suscita, no mínimo,
umas 200 novas perguntas: o
que o frenesi da mídia está nos
oferecendo significa realmente
a verdade? Essa é a maneira
mais adequada de buscá-la?
Por que a mentira sobre um
furtivo encontro amoroso é
mais séria do que a mentira
sobre um bombardeio ou um
embargo econômico?
Essa redoma virtuosa em que
se quer encerrar um presidente
não é um pouco ambivalente?
Kissinger dizia que o poder é
afrodisíaco. A mídia, por seu
lado, glamouriza o presidente
que também precisa se tornar
atraente para ganhar as eleições. O resultado é um elo de
sedução entre um homem e
milhares de mulheres. Dificilmente isso não se traduz no inconsciente como uma promessa de amor, um sonho não revelado daquilo que mais despreza nos povos bárbaros: o
harém.
Talvez esteja aí o núcleo de
sensação desse episódio. A humanidade constrói um super-homem com seu material
imaginário: projeções, mitos,
glamour. Agora estamos na fase de demolição, afirmando em
todas as páginas que Clinton é
apenas um homem como os
outros.
Quando estaremos preparados para um governo de homens de carne e osso? Esse é
um lado do drama. O outro seria: quando os homens de carne e osso vão parar e fingir supremacia, só para ganhar as
eleições?
Que tudo esteja acontecendo
nos Estados Unidos é bom.
Grande parte dos sonhos eróticos da humanidade se fabrica
em Hollywood. Sharon Stone
cruza as pernas diante de milhões de espectadores deslumbrados. A promessa de um
mundo livre e erotizado se
confronta agora com a realidade do sexo infeliz, com a fúria puritana, com a dura expressão de Linda Tripp, a mulher que investiga austeramente o sexo, no promotor Kenneth
Starr, examinando as dobras
do vestido de Monica. Hollywood e Washington, Sharon
Stone e Linda Tripp seriam a
mesma cidade, a mesma pessoa?
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