São Paulo, segunda, 2 de fevereiro de 1998

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O presidente, a estagiária e as manchas no vestido

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha Chegamos a um momento na história da humanidade em que a principal questão é saber se um homem, o presidente dos Estados Unidos, fez amor com uma jovem mulher, estagiária na Casa Branca.
Para um velho escritor polonês, que viveu os horrores do nazismo e, depois disso, a lenta agonia do socialismo real, todo esse debate, no fundo, é um bom sinal.
Ele desdenha os críticos da sociedade de consumo e diz: no fundo, quase todos os povos pobres sonham com essa abundância material. O pavor de certos filósofos é a aspiração das grandes massas.
No tempo do fascismo, reflete, os italianos produziram um romance em que uma família judia era obrigada a deixar sua quadra de tênis. Vivíamos sob o impacto de uma feroz repressão e dizíamos: "Então é isso o fascismo, perder sua quadra de tênis?".
Guardadas as proporções, creio que o mundo se volta para os Estados Unidos e pergunta: "Então é esse o problema, saber se Clinton e Monica se encontraram secretamente, se houve penetração, se as manchas no vestido azul-marinho são mesmo de esperma?".
Reduzir os fatos a essas perguntas significa reduzir também os norte-americanos a um clichê confortante: puritanos, levemente infantis, preocupados se alguém faz amor por cima, por baixo, se cospe ou engole.
O drama que hoje envolve a Casa Branca talvez seja melhor entendido se examinarmos as transformações na figura do homem público e na importância crescente do espetáculo na política.
Vivemos um momento em que grande parte dos gestos políticos se faz para a mídia. Profissionais são contratados com a missão de ensinar os políticos a ganharem seu espaço. Eles se derramam em confissões íntimas, abrem suas casas, mostram a família e os animais domésticos, revelam seus refúgios de férias, intervenções cirúrgicas e coleções de selos. Transparência total.
Todos sabemos que a total transparência não existe, que, até certo ponto, permanecemos um mistério até para nossos íntimos. No entanto, políticos e opinião pública jogam esse jogo. Projeta-se neles um ideal de inteligência e comportamento que, no fundo, sabemos ser muito raro nas pessoas reais, de carne e osso.
Espera-se que um presidente da República seja monogâmico. Pensa-se desta forma: ora, pessoalmente, não sou monogâmico, mas, se alguém se candidata a presidente, tem de ser, pois quem trai a própria mulher também trairá seus compromissos.
Os candidatos a presidente sabem dessas exigências e procuram ser discretos. No passado, desfrutavam uma certa cumplicidade da mídia. Se Kennedy fosse submetido à caçada implacável que se faz a Clinton, talvez tivesse entrado na história mais pelas suas aventuras sexuais do que por sua performance como presidente.
A opinião pública, sequiosa por verdade e transparência, impõe um limite preliminar: quem não for monogâmico saia do páreo. Não há espaço para grandes lances de sinceridade uma vez que a fronteira está previamente delimitada: é preciso ser fiel à própria mulher, antes de ser fiel a si mesmo.
Creio que a iniciativa de rocar o tema suscita, no mínimo, umas 200 novas perguntas: o que o frenesi da mídia está nos oferecendo significa realmente a verdade? Essa é a maneira mais adequada de buscá-la? Por que a mentira sobre um furtivo encontro amoroso é mais séria do que a mentira sobre um bombardeio ou um embargo econômico?
Essa redoma virtuosa em que se quer encerrar um presidente não é um pouco ambivalente?
Kissinger dizia que o poder é afrodisíaco. A mídia, por seu lado, glamouriza o presidente que também precisa se tornar atraente para ganhar as eleições. O resultado é um elo de sedução entre um homem e milhares de mulheres. Dificilmente isso não se traduz no inconsciente como uma promessa de amor, um sonho não revelado daquilo que mais despreza nos povos bárbaros: o harém.
Talvez esteja aí o núcleo de sensação desse episódio. A humanidade constrói um super-homem com seu material imaginário: projeções, mitos, glamour. Agora estamos na fase de demolição, afirmando em todas as páginas que Clinton é apenas um homem como os outros.
Quando estaremos preparados para um governo de homens de carne e osso? Esse é um lado do drama. O outro seria: quando os homens de carne e osso vão parar e fingir supremacia, só para ganhar as eleições?
Que tudo esteja acontecendo nos Estados Unidos é bom. Grande parte dos sonhos eróticos da humanidade se fabrica em Hollywood. Sharon Stone cruza as pernas diante de milhões de espectadores deslumbrados. A promessa de um mundo livre e erotizado se confronta agora com a realidade do sexo infeliz, com a fúria puritana, com a dura expressão de Linda Tripp, a mulher que investiga austeramente o sexo, no promotor Kenneth Starr, examinando as dobras do vestido de Monica. Hollywood e Washington, Sharon Stone e Linda Tripp seriam a mesma cidade, a mesma pessoa?



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