São Paulo, sábado, 02 de março de 2002

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"A CAÇA VIRTUAL"

Barroso caça a essência da poesia

REYNALDO JARDIM
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Caça Virtual" exige um leitor bem informado. O toque popular, que se encontra em Bandeira, Drummond, Mário de Andrade e até em João Cabral, está ausente.
O título do livro é tema de um único poema, o de abertura: "Nova Profissão de Fé". A caçada virtual e satírica se esgota aí.
Anote aí: icástico, folhas bífidas, nenúfares, tiorbas, plectros, dicróica, codicilos, corimbos, ordálio. Há um certo pedantismo nessas palavras, o que é estranho em um autor que não precisa desses recursos mal soantes.
Deixando a implicância de lado, passemos à caça real para encontrar um poeta de doutorada competência, exercendo com mestria seu ofício e arte. O prefácio tem a chancela de Eduardo Portella, que traça um perfil bem delineado do autor, com clara lucidez.
Ivo Barroso não é um principiante, mas seus poemas são desconhecidos mesmo por aqueles afeitos à literatura. Esse é praticamente um livro de estréia. O autor dedicou grande parte da vida intelectual vertendo, com perfeição, Shakespeare, Elliot, Rimbaud.
Durante dez anos exilado em Portugal, na época da ditadura militar, publicou, em tiragem limitada, dois livros. No Brasil, editou um ensaio e traduções de "O Corvo", de Edgar Allan Poe.
Voltando agora a produzir com mais frequência, resolveu selecionar o que lhe parecia válido e acrescentou novos textos. Temos, assim, uma "antologia de estréia".
Os poemas não são datados nem situados no tempo e no espaço. Devem valer enquanto peças expressivas em si, independentes das circunstâncias temporais ou modais em que foram elaboradas. É uma sonegação de informações que o autor considerou necessária, impedindo o leitor de perceber a evolução ou involução da qualidade dos produtos. Sem data de fabricação, considere-se a validade não declarada. Por sorte, temos mercadoria não perecível.
Todavia, Portella detecta aspectos marcantes permeando a obra: reconstrução classicizante, o recorte pós-romântico, o simbolismo tardo-moderno, a sátira ao modernismo, o fascínio concreto e as irrupções da cibercultura.
Ninguém está imune a influências, principalmente quem leu, releu, traduziu e viveu intensamente a produção nacional e estrangeira. Negar influências é desconsiderar elos da corrente cultural.
É impossível não perceber o sotaque cabralino em "O Muro". E na reconstrução classicizante é inevitável a percepção das fontes eruditas que estão na base de sua formação intelectual.
Contudo, a sensibilidade refinada faz de influências, confluências, competência e talento, poemas criativos, personalísticos, inserindo Barroso no quadro limitado dos grandes poetas atuais.
Respeitando a desordem cronológica podemos começar pelos "Poemas da Fase Concretista" que são, na verdade, neoconcretos, e citar como o mais significativo o "Época-épico" com sua carga de alta voltagem hecatômbica.
Embora anacrônicos em relação à estética contemporânea, os "Dez Sonetos de Abraxas" são de uma fatura formal tão habilmente construída que emociona por si mesma. E os conflitos filosófico-existenciais garantem a cada soneto o status de obra-prima.
O quarto centenário da morte de Camões ganhou um digno presente. Nenhuma outra homenagem, festiva, literária, histórica, popular ou oficial, pode se igualar a "Papel Chão" (transposição corajosa de Babel e Sião). Essa ode-epopéia de virtuosismo linguístico comovente e comovida.
Para os que gostam de experimentos, uma jóia rara que por si só vale uma consagração, é perfeita, de brilhante lapidação.
"Visitações de Alcipe, quatro tocatas para clavicórdio e sintetizador" é a parte final da caça de Barroso para capturar a essência da poesia. Entre as muitas chaves de ouro, vai esta que fecha uma das estrofes: "Depois já não me importa a volta em breve:/ A bagagem do corpo está mais leve".


Reynaldo Jardim é poeta e jornalista


A Caça Virtual     
Autor: Ivo Barroso
Editora: Record
Quanto: R$ 25 (240 págs.)




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