São Paulo, sábado, 02 de março de 2002

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RESENHA DA SEMANA

Dinâmica paradoxal

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Samuel Beckett (1906-1989) se recusava a interpretar o significado dos próprios textos. "O que está acontecendo?/ Alguma coisa segue o seu curso/ Clov!/ Que é?/ Não estamos começando a... a... significar alguma coisa?/ Significar? Nós, significar! Ah, essa é boa!", dizem os personagens de "Fim de Partida" (1956), uma das principais peças do dramaturgo e escritor irlandês, recentemente encenada em São Paulo com o título "Fim do Jogo" e agora publicada com nova tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade.
"Dos grandes dramas de Shakespeare, como também das peças de Beckett, não se pode extrair o que hoje se chama uma mensagem", escreveu Adorno. E, no entanto, seria cair numa armadilha contentar-se com a impossibilidade de interpretá-las, já que a sua redução ao mínimo e ao "nonsense" é resultado de uma intensa reflexão histórica e existencial.
"As peças de Beckett são absurdas, não pela ausência de todo e qualquer sentido -seriam, então, irrelevantes-, mas porque põem o sentido em questão (...), o seu sentido cresce na negação do sentido", prossegue o filósofo alemão. "Nada acontece. Ou, mais precisamente, o que acontece é o que não acontece", escreve Paul Auster, sobre o autor de "Esperando Godot".
"Fim de Partida" encena uma situação em que o drama praticamente inexiste: um ambiente fechado com duas janelas laterais, no alto; um cego inválido, imobilizado numa cadeira no centro do palco; seu empregado solícito, que ameaça ir embora e nunca cumpre a palavra; e dois latões, aos quais estão confinados o pai e a mãe.
Beckett comparou a peça aos movimentos de uma partida de xadrez, mas o impasse da situação permite uma série de leituras, às vezes óbvias. Pode ser uma alegoria sobre a relação de poder entre o mestre e o empregado, ou sobre a guerra, e ao mesmo tempo uma homenagem a Shakespeare -vários indícios remetem Hamm, o personagem central, cego e sentado em seu trono, ao Rei Lear e a Hamlet.
O clima é de devastação, de um mundo mutilado, sem perspectivas ou progressão, em que só resta esperar pela morte: "O fim está no começo e no entanto continua-se". É a frase que melhor define "Fim de Partida". E, no entanto, a sua leitura é hilariante.
"De página em página, Beckett constrói um mundo a partir de quase nada. (...) Mas a cada etapa do caminho, queremos estar exatamente onde eles (os personagens) estão. Como Beckett consegue isso é um mistério", comenta Auster num ensaio sobre o escritor.
O mistério -o prazer da leitura desencadeado pela escassez deliberada da representação de um mundo em ruínas- vem da dimensão lúdica com que o leitor ou espectador se vê confrontado ao deparar com a linguagem reduzida ao mínimo. Só lhe resta rir.
"A lógica associativa do teatro de Beckett, na qual uma frase atrai a seguinte ou a réplica, da mesma maneira que em música um tema chama a sua continuação ou o seu contraste, desdenha toda a imitação da aparição empírica", escreve Adorno.
O "nonsense" é uma forma de levar o sentido ao pé da letra até inverter-lhe a lógica, ou vice-versa: "Vá ver se ele ouviu./ Ouviu./ As duas vezes?/ Só uma./ A primeira ou a segunda?" ou "Já me fez essas perguntas milhões de vezes./ Gosto de velhas perguntas. Ah, velhas perguntas, velhas respostas, não há nada como elas".
Não há mensagem, porque não há respostas. As respostas são circulares. As alegorias e as metáforas só podem girar sobre si mesmas: são perguntas mandadas de volta no lugar de respostas. Não dizem nada, são circuitos fechados. O que diz é a significativa contradição entre essa aparente falta de sentidos e a própria obra, que é puro sentido pelo jogo da sua criação.
Beckett põe a linguagem em questão e com isso evita que a representação remeta a realidades imediatas que possam esgotá-la em alegorias fixas, como no surrealismo ou no teatro do absurdo. No seu aparente esvaziamento, o sentido permanece potencial, livre e circular.
A peça passa a ser uma máquina de fazer sentido. O texto encena a falta de sentido e faz dessa ausência um estado de criação permanente no jogo com o leitor e o espectador. É o outro sentido da frase: "O fim está no começo e no entanto continua-se".


Fim de Partida
Fin de Partie     
Autor: Samuel Beckett
Tradutor: Fábio de Souza Andrade
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 30 (174 págs.)




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