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RESENHA DA SEMANA
Dinâmica paradoxal
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Samuel Beckett (1906-1989)
se recusava a interpretar o
significado dos próprios textos.
"O que está acontecendo?/ Alguma coisa segue o seu curso/
Clov!/ Que é?/ Não estamos começando a... a... significar alguma coisa?/ Significar? Nós, significar! Ah, essa é boa!", dizem os
personagens de "Fim de Partida" (1956), uma das principais
peças do dramaturgo e escritor
irlandês, recentemente encenada em São Paulo com o título
"Fim do Jogo" e agora publicada
com nova tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade.
"Dos grandes dramas de Shakespeare, como também das peças de Beckett, não se pode extrair o que hoje se chama uma
mensagem", escreveu Adorno.
E, no entanto, seria cair numa
armadilha contentar-se com a
impossibilidade de interpretá-las, já que a sua redução ao mínimo e ao "nonsense" é resultado
de uma intensa reflexão histórica e existencial.
"As peças de Beckett são absurdas, não pela ausência de todo e qualquer sentido -seriam,
então, irrelevantes-, mas porque põem o sentido em questão
(...), o seu sentido cresce na negação do sentido", prossegue o
filósofo alemão. "Nada acontece. Ou, mais precisamente, o
que acontece é o que não acontece", escreve Paul Auster, sobre
o autor de "Esperando Godot".
"Fim de Partida" encena uma
situação em que o drama praticamente inexiste: um ambiente
fechado com duas janelas laterais, no alto; um cego inválido,
imobilizado numa cadeira no
centro do palco; seu empregado
solícito, que ameaça ir embora e
nunca cumpre a palavra; e dois
latões, aos quais estão confinados o pai e a mãe.
Beckett comparou a peça aos
movimentos de uma partida de
xadrez, mas o impasse da situação permite uma série de leituras, às vezes óbvias. Pode ser
uma alegoria sobre a relação de
poder entre o mestre e o empregado, ou sobre a guerra, e ao
mesmo tempo uma homenagem a Shakespeare -vários indícios remetem Hamm, o personagem central, cego e sentado
em seu trono, ao Rei Lear e a
Hamlet.
O clima é de devastação, de
um mundo mutilado, sem perspectivas ou progressão, em que
só resta esperar pela morte: "O
fim está no começo e no entanto
continua-se". É a frase que melhor define "Fim de Partida". E,
no entanto, a sua leitura é hilariante.
"De página em página, Beckett
constrói um mundo a partir de
quase nada. (...) Mas a cada etapa do caminho, queremos estar
exatamente onde eles (os personagens) estão. Como Beckett
consegue isso é um mistério",
comenta Auster num ensaio sobre o escritor.
O mistério -o prazer da leitura desencadeado pela escassez
deliberada da representação de
um mundo em ruínas- vem da
dimensão lúdica com que o leitor ou espectador se vê confrontado ao deparar com a linguagem reduzida ao mínimo. Só lhe
resta rir.
"A lógica associativa do teatro
de Beckett, na qual uma frase
atrai a seguinte ou a réplica, da
mesma maneira que em música
um tema chama a sua continuação ou o seu contraste, desdenha toda a imitação da aparição
empírica", escreve Adorno.
O "nonsense" é uma forma de
levar o sentido ao pé da letra até
inverter-lhe a lógica, ou vice-versa: "Vá ver se ele ouviu./ Ouviu./ As duas vezes?/ Só uma./ A
primeira ou a segunda?" ou "Já
me fez essas perguntas milhões
de vezes./ Gosto de velhas perguntas. Ah, velhas perguntas,
velhas respostas, não há nada
como elas".
Não há mensagem, porque
não há respostas. As respostas
são circulares. As alegorias e as
metáforas só podem girar sobre
si mesmas: são perguntas mandadas de volta no lugar de respostas. Não dizem nada, são circuitos fechados. O que diz é a
significativa contradição entre
essa aparente falta de sentidos e
a própria obra, que é puro sentido pelo jogo da sua criação.
Beckett põe a linguagem em
questão e com isso evita que a
representação remeta a realidades imediatas que possam esgotá-la em alegorias fixas, como no
surrealismo ou no teatro do absurdo. No seu aparente esvaziamento, o sentido permanece potencial, livre e circular.
A peça passa a ser uma máquina de fazer sentido. O texto encena a falta de sentido e faz dessa
ausência um estado de criação
permanente no jogo com o leitor e o espectador. É o outro sentido da frase: "O fim está no começo e no entanto continua-se".
Fim de Partida
Fin de Partie
Autor: Samuel Beckett
Tradutor: Fábio de Souza Andrade
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 30 (174 págs.)
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