São Paulo, terça-feira, 02 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

Entre ser e dizer

Em "Peixe Grande", de Tim Burton, apesar dos clichês (o filme, execrado por parte da crítica, pode ser visto como uma releitura do realismo mágico pelo filtro da mitologia popular americana), importa que haja a consciência da mentira. Um pai passa a vida contando as histórias mais mirabolantes a um filho que, depois de cortar relações com ele justamente por estar farto de ouvir os casos inacreditáveis, é obrigado a reatá-las agora que o pai está à beira da morte.
A tese do filme (e do livro na sua origem) é clara: as histórias do pai são interessantes porque são inventadas. É esse também o seu drama: a maneira como um homem reinventa a vida já é a sua vida -e diz mais sobre ele do que qualquer biografia objetiva, pois incorpora o seu imaginário no confronto com o real.
O filho, jornalista de uma agência de notícias em Paris, não se conforma, quer saber quem é o pai, quer encontrar o homem por trás das mentiras, e só no final vai entender que por trás das mentiras não há ninguém, pois o pai é as suas mentiras. Saber e aceitar que o pai mente é pré-requisito para admirá-lo, para se emocionar com o que ele conta e para que o filho termine se reconciliando com a memória do pai e consigo mesmo.
O que a consciência da mentira acaba revelando ao filho não é, então, a óbvia deturpação da realidade (que antes o exasperava), mas uma outra ótica pela qual finalmente ele consegue ver que, pela mentira, o pai resistia a se submeter ao real, à mão de Deus; tinha passado a vida insistindo, com seus parcos meios, em se fazer criador também. É a consciência dessa fragilidade e da sua obstinação que o engrandece aos olhos do filho -e do espectador.
No final, no enterro do velho, a carga dramática se acentua pelo aparecimento dos personagens reais em que o morto (o narrador) tinha baseado as suas histórias (mentiras). Ou seja, a mentira nunca é totalmente descabida ou estapafúrdia, ela é conseqüência de um choque entre um sujeito e o real, uma reflexão sobre acontecimentos e pessoas reais, uma forma mediada de representação do real que leva em conta a subjetividade em vez de escondê-la. Desse ponto de vista, a mentira é a condição de possibilidade da arte e da individualidade. E não é à toa que "Dom Quixote" marque o nascimento do romance moderno, auto-reflexivo e irônico: é a história de um mitômano, um homem cujo cérebro, "de pouco dormir e de muito ler" romances de cavalaria, acabou secando e levando-o a acreditar piamente na própria imaginação e na dos livros.
A realidade de Dom Quixote lhe é dada pelas leituras, de tal modo que suas saídas pelo mundo passam a ser tentativas de testar a verossimilhança da realidade tendo como modelo os romances -e não o inverso, como costuma acontecer. Dom Quixote é um homem que, na sua loucura, dobra a realidade à imaginação e garante assim o riso do leitor e o fundamento da ironia.
Se em "Dom Quixote" também se fala de "tão calamitosos tempos", referindo-se aos males da época, à decadência da moralidade do homem, é para ironizá-los. Mais uma razão contra os que defendem, por uma ideologia reducionista e equivocada, que em tempos difíceis a invenção é perfumaria e a arte deve seguir a lógica do jornalismo para dar conta do real.
O real é resultado de uma complexidade de fatores e não será ao reduzi-los que se conseguirá dar conta dele -como se em tempos difíceis não pudesse haver arte, não pudesse haver "mentira" (o direito à ficção e à criação imaginária), só a "verdade" determinada pela necessidade mais imediata. A arte, ao contrário do jornalismo, não trata de uma realidade, mas tenta reinaugurar essa realidade a cada nova ação, a cada nova obra. Ela refaz essa realidade ao se tornar parte dela. É o que acaba entendendo o filho jornalista no filme: que, a exemplo da arte, o pai tentava resistir à mão de Deus.
A diferença, em relação inclusive a outros filmes do próprio Tim Burton, é que "Peixe Grande" fala disso, mas não faz isso. É um filme sobre uma coisa que ele próprio não é. Em "O Pequeno Soldado" (1963), de Godard, por exemplo, reexibido em São Paulo, os personagens falam sem parar, têm idéias sobre tudo, e ainda assim o filme não é "sobre" alguma coisa (não é "sobre a guerra da Argélia", embora também não deixe de ser); ele é a coisa. Ao contrário de "Peixe Grande", que não é aquilo de que está falando, mas no máximo uma ilustração singela.
Tim Burton fez um filme sobre contar histórias, sobre um contador de histórias. Godard, a exemplo de "Dom Quixote", inaugurou uma outra maneira de contar histórias e assim se tornou a própria história.
Seria tentador, por contraposição ao Godard dos anos 60, fazer de "Peixe Grande" um emblema das artes de hoje. Uma arte retórica, ilustrativa, sobre alguma coisa. Uma vontade de dizer sem ter os meios para fazê-lo com a força de quem diz pela primeira vez. Mas seria cair na armadilha fácil e empobrecedora das generalizações. Nenhuma época é monolítica. E a arte da crítica, nesse caso, consistiria em conseguir detectar nas obras do presente as exceções que, em princípio, só estarão acessíveis aos olhos do futuro, com a distância dos anos.


Texto Anterior: "Reality show": Patricinhas encaram "vida simples" rural
Próximo Texto: Memória fotográfica
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.