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BERNARDO CARVALHO
Entre ser e dizer
Em "Peixe Grande", de Tim
Burton, apesar dos clichês (o
filme, execrado por parte da crítica, pode ser visto como uma releitura do realismo mágico pelo filtro da mitologia popular americana), importa que haja a consciência da mentira. Um pai passa
a vida contando as histórias mais
mirabolantes a um filho que, depois de cortar relações com ele
justamente por estar farto de ouvir os casos inacreditáveis, é obrigado a reatá-las agora que o pai
está à beira da morte.
A tese do filme (e do livro na sua
origem) é clara: as histórias do
pai são interessantes porque são
inventadas. É esse também o seu
drama: a maneira como um homem reinventa a vida já é a sua
vida -e diz mais sobre ele do que
qualquer biografia objetiva, pois
incorpora o seu imaginário no
confronto com o real.
O filho, jornalista de uma agência de notícias em Paris, não se
conforma, quer saber quem é o
pai, quer encontrar o homem por
trás das mentiras, e só no final vai
entender que por trás das mentiras não há ninguém, pois o pai é
as suas mentiras. Saber e aceitar
que o pai mente é pré-requisito
para admirá-lo, para se emocionar com o que ele conta e para
que o filho termine se reconciliando com a memória do pai e consigo mesmo.
O que a consciência da mentira
acaba revelando ao filho não é,
então, a óbvia deturpação da realidade (que antes o exasperava),
mas uma outra ótica pela qual finalmente ele consegue ver que,
pela mentira, o pai resistia a se
submeter ao real, à mão de Deus;
tinha passado a vida insistindo,
com seus parcos meios, em se fazer criador também. É a consciência dessa fragilidade e da sua obstinação que o engrandece aos
olhos do filho -e do espectador.
No final, no enterro do velho, a
carga dramática se acentua pelo
aparecimento dos personagens
reais em que o morto (o narrador) tinha baseado as suas histórias (mentiras). Ou seja, a mentira nunca é totalmente descabida
ou estapafúrdia, ela é conseqüência de um choque entre um sujeito e o real, uma reflexão sobre
acontecimentos e pessoas reais,
uma forma mediada de representação do real que leva em conta a
subjetividade em vez de escondê-la. Desse ponto de vista, a mentira
é a condição de possibilidade da
arte e da individualidade. E não é
à toa que "Dom Quixote" marque
o nascimento do romance moderno, auto-reflexivo e irônico: é a
história de um mitômano, um homem cujo cérebro, "de pouco dormir e de muito ler" romances de
cavalaria, acabou secando e levando-o a acreditar piamente na
própria imaginação e na dos livros.
A realidade de Dom Quixote lhe
é dada pelas leituras, de tal modo
que suas saídas pelo mundo passam a ser tentativas de testar a verossimilhança da realidade tendo
como modelo os romances -e
não o inverso, como costuma
acontecer. Dom Quixote é um homem que, na sua loucura, dobra
a realidade à imaginação e garante assim o riso do leitor e o
fundamento da ironia.
Se em "Dom Quixote" também
se fala de "tão calamitosos tempos", referindo-se aos males da
época, à decadência da moralidade do homem, é para ironizá-los.
Mais uma razão contra os que defendem, por uma ideologia reducionista e equivocada, que em
tempos difíceis a invenção é perfumaria e a arte deve seguir a lógica do jornalismo para dar conta
do real.
O real é resultado de uma complexidade de fatores e não será ao
reduzi-los que se conseguirá dar
conta dele -como se em tempos
difíceis não pudesse haver arte,
não pudesse haver "mentira" (o
direito à ficção e à criação imaginária), só a "verdade" determinada pela necessidade mais imediata. A arte, ao contrário do jornalismo, não trata de uma realidade, mas tenta reinaugurar essa
realidade a cada nova ação, a cada nova obra. Ela refaz essa realidade ao se tornar parte dela. É o
que acaba entendendo o filho jornalista no filme: que, a exemplo
da arte, o pai tentava resistir à
mão de Deus.
A diferença, em relação inclusive a outros filmes do próprio Tim
Burton, é que "Peixe Grande" fala
disso, mas não faz isso. É um filme sobre uma coisa que ele próprio não é. Em "O Pequeno Soldado" (1963), de Godard, por exemplo, reexibido em São Paulo, os
personagens falam sem parar,
têm idéias sobre tudo, e ainda assim o filme não é "sobre" alguma
coisa (não é "sobre a guerra da
Argélia", embora também não
deixe de ser); ele é a coisa. Ao contrário de "Peixe Grande", que não
é aquilo de que está falando, mas
no máximo uma ilustração singela.
Tim Burton fez um filme sobre
contar histórias, sobre um contador de histórias. Godard, a exemplo de "Dom Quixote", inaugurou uma outra maneira de contar
histórias e assim se tornou a própria história.
Seria tentador, por contraposição ao Godard dos anos 60, fazer
de "Peixe Grande" um emblema
das artes de hoje. Uma arte retórica, ilustrativa, sobre alguma coisa. Uma vontade de dizer sem ter
os meios para fazê-lo com a força
de quem diz pela primeira vez.
Mas seria cair na armadilha fácil
e empobrecedora das generalizações. Nenhuma época é monolítica. E a arte da crítica, nesse caso,
consistiria em conseguir detectar
nas obras do presente as exceções
que, em princípio, só estarão acessíveis aos olhos do futuro, com a
distância dos anos.
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