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MARCELO COELHO
Os durões não merecem lágrimas
Quando vi a cara da boxeadora alemã pela primeira
vez, fui logo dizendo: "Olha aí, os
americanos não conseguem mesmo fazer um filme sem vilão. Já
arranjaram alguém para o papel". E que monstro! A mulher,
apresentada como campeã de boxe feminino e ex-prostituta em
Berlim Oriental, parecia um velociraptor com cabelo afro, babando ácido sulfúrico.
Ela estava pronta para fazer as
maiores maldades contra Hillary
Swank, a mocinha de "Menina de
Ouro", mas o experiente Clint
Eastwood achou melhor tirá-la
de cena logo depois. Tive de engolir em seco. "OK, Clint Eastwood é
um diretor respeitado pelos críticos, e aqui estou eu vazando o
meu preconceito contra o cinema
de Hollywood."
Mas era apenas o primeiro
round. Enquanto se desenrolavam os sucessos e tristezas da pequena garçonete miserável que tinha o sonho de ser boxeadora e
encontrou um treinador durão e
paternal para testá-la, este teimoso articulista não se rendia. "Eles
não dão ponto sem nó. Se mostraram a dinossaura alemã, não foi
à toa."
Eu tinha só de esperar mais um
pouquinho, enquanto o velho
Clint explicava aos mais obtusos
espectadores da platéia que até
ele, um durão, era um cara sensível, cheio de culpas, dores e fragilidades, vindas de um passado remoto... Coisas que só o padre irlandês a que Clint recorria nos
momentos mais sem assunto do
filme era incapaz de perceber.
Eu tinha também de ver um garoto meio débil mental ser surrado pelos malvados e insensíveis de
plantão, enquanto o cara durão,
mas sensível, número dois
-Morgan Freeman- era instado a reagir, dando ótimos e merecidos murros naquele tipo de
queixo que sempre terá de levar
murros nos filmes de Hollywood,
para a alegria sanguinária e justa
da platéia.
Até que finalmente minhas previsões preconceituosas se cumpriram. Sim, teríamos a volta da
mulher-dinossauro, teríamos o
prazer de odiar suas vilanias e de
gozar com os castigos que ela sofreria: boas cenas de supercílios
arrancados, de nervos ciáticos explodindo a murro, em dolby estéreo... Não conto mais nada do filme, que, como tantas outras produções ganhadoras do Oscar, você já viu mesmo sem saber.
Seja como for, assumi um papel
meio indelicado. Muita gente
chorava na platéia. Não existe
nada mais antipático do que um
crítico dizendo que todas aquelas
lágrimas foram vãs, que o filme
não as merece, que tudo não passa de um novelão inagüentável,
de uma violenta manipulação comercial, conduzida com espantosa frieza por Clint e seus comparsas.
Pronto, eu já disse. Não consegui ficar sem dizer. Por que estou
com tanta raiva? É porque todas
as tristezas, dores e violências de
"Menina de Ouro", eu também as
levo a sério; não consigo me conformar com as desgraças que
aconteceram. Poderia aceitá-las
se tivessem justificação estética.
Mas não perdôo ao diretor e aos
roteiristas por terem inventado
desgraças irreais, exageradas e
apelativas apenas para comover o
público.
Fico com pena dos indefesos
personagens, da pobre boxeadorazinha dentuça, do velho treinador fracassado e do seu auxiliar
cego de um olho não só pelo que
sofrem ao longo da história mas
também por terem caído na mão
de um bando de brutais açougueiros de Hollywood.
Fora isso, o que me intriga é o
fato de que muita gente leva a sério Clint Eastwood como artista;
"Menina de Ouro" surge nas conversas como um filme respeitável
e até profundo. Arrisco algumas
hipóteses a esse respeito.
Em primeiro lugar, a música é
usada com bastante economia e
mesmo certa sutileza no filme.
Um melodrama explícito se encarregaria de derramar toneladas de violinos em certas cenas;
"Menina de Ouro" amputou, por
assim dizer, a trilha sonora, fazendo com que momentos importantes da história ficassem como
que cercados de silêncio. Filmes
de arte são em geral mais "silenciosos" do que obras comerciais,
promovendo certa distância entre
a tela e o espectador; o recurso,
aqui degradado em truque, sem
dúvida serviu para dar um "upgrade" estético para Eastwood.
Outro fator de nobilitação para
"Menina de Ouro" é que antigos
infortúnios na vida dos personagens recebem apenas menção indireta, não havendo "flashbacks"
ou explicações em demasia. Supostamente, o espectador irá deduzindo por si mesmo o que cada
evento da história foi capaz de
evocar na memória dos personagens. Ao mesmo tempo, o filme
quer deixar tudo bem explicado
para a platéia.
Dessa ambigüidade, justamente, nasce o jogo entre o treinador e
seu auxiliar, entre Clint Eastwood e Morgan Freeman: um explicará à platéia tudo o que o outro agüenta em silêncio. Por isso,
a meu ver, a pose de "durão sensível" decorre menos da substância
humana dos personagens e mais
da duplicidade emocional do filme, que não abre mão da obviedade lacrimosa e, simultaneamente, flerta com a contenção estética.
Quantidades equivalentes de
sofrimento contido se deixam
perceber em "Ray", outro filme
que concorreu ao Oscar. Também
neste caso se oscila entre as desgraças mostradas na tela e as dores silenciadas do personagem. O
interesse em fazer de Jamie Foxx
um clone visual perfeito do biografado sem dúvida diminuiu o
poder de introspecção que o filme
poderia ter.
Mas "Ray" pelo menos dá para
o gasto; não me senti manipulado, e a história de uma pessoa
real, ainda que repleta de acidentes e desgraças, inspira mais do
que lágrimas: inspira respeito,
coisa que as personagens de um
dramalhão como "Menina de
Ouro" não merecem nem um
pouco.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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