São Paulo, quarta-feira, 02 de março de 2005

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MARCELO COELHO

Os durões não merecem lágrimas

Quando vi a cara da boxeadora alemã pela primeira vez, fui logo dizendo: "Olha aí, os americanos não conseguem mesmo fazer um filme sem vilão. Já arranjaram alguém para o papel". E que monstro! A mulher, apresentada como campeã de boxe feminino e ex-prostituta em Berlim Oriental, parecia um velociraptor com cabelo afro, babando ácido sulfúrico.
Ela estava pronta para fazer as maiores maldades contra Hillary Swank, a mocinha de "Menina de Ouro", mas o experiente Clint Eastwood achou melhor tirá-la de cena logo depois. Tive de engolir em seco. "OK, Clint Eastwood é um diretor respeitado pelos críticos, e aqui estou eu vazando o meu preconceito contra o cinema de Hollywood."
Mas era apenas o primeiro round. Enquanto se desenrolavam os sucessos e tristezas da pequena garçonete miserável que tinha o sonho de ser boxeadora e encontrou um treinador durão e paternal para testá-la, este teimoso articulista não se rendia. "Eles não dão ponto sem nó. Se mostraram a dinossaura alemã, não foi à toa."
Eu tinha só de esperar mais um pouquinho, enquanto o velho Clint explicava aos mais obtusos espectadores da platéia que até ele, um durão, era um cara sensível, cheio de culpas, dores e fragilidades, vindas de um passado remoto... Coisas que só o padre irlandês a que Clint recorria nos momentos mais sem assunto do filme era incapaz de perceber.
Eu tinha também de ver um garoto meio débil mental ser surrado pelos malvados e insensíveis de plantão, enquanto o cara durão, mas sensível, número dois -Morgan Freeman- era instado a reagir, dando ótimos e merecidos murros naquele tipo de queixo que sempre terá de levar murros nos filmes de Hollywood, para a alegria sanguinária e justa da platéia.
Até que finalmente minhas previsões preconceituosas se cumpriram. Sim, teríamos a volta da mulher-dinossauro, teríamos o prazer de odiar suas vilanias e de gozar com os castigos que ela sofreria: boas cenas de supercílios arrancados, de nervos ciáticos explodindo a murro, em dolby estéreo... Não conto mais nada do filme, que, como tantas outras produções ganhadoras do Oscar, você já viu mesmo sem saber.
Seja como for, assumi um papel meio indelicado. Muita gente chorava na platéia. Não existe nada mais antipático do que um crítico dizendo que todas aquelas lágrimas foram vãs, que o filme não as merece, que tudo não passa de um novelão inagüentável, de uma violenta manipulação comercial, conduzida com espantosa frieza por Clint e seus comparsas.
Pronto, eu já disse. Não consegui ficar sem dizer. Por que estou com tanta raiva? É porque todas as tristezas, dores e violências de "Menina de Ouro", eu também as levo a sério; não consigo me conformar com as desgraças que aconteceram. Poderia aceitá-las se tivessem justificação estética. Mas não perdôo ao diretor e aos roteiristas por terem inventado desgraças irreais, exageradas e apelativas apenas para comover o público.
Fico com pena dos indefesos personagens, da pobre boxeadorazinha dentuça, do velho treinador fracassado e do seu auxiliar cego de um olho não só pelo que sofrem ao longo da história mas também por terem caído na mão de um bando de brutais açougueiros de Hollywood.
Fora isso, o que me intriga é o fato de que muita gente leva a sério Clint Eastwood como artista; "Menina de Ouro" surge nas conversas como um filme respeitável e até profundo. Arrisco algumas hipóteses a esse respeito.
Em primeiro lugar, a música é usada com bastante economia e mesmo certa sutileza no filme. Um melodrama explícito se encarregaria de derramar toneladas de violinos em certas cenas; "Menina de Ouro" amputou, por assim dizer, a trilha sonora, fazendo com que momentos importantes da história ficassem como que cercados de silêncio. Filmes de arte são em geral mais "silenciosos" do que obras comerciais, promovendo certa distância entre a tela e o espectador; o recurso, aqui degradado em truque, sem dúvida serviu para dar um "upgrade" estético para Eastwood.
Outro fator de nobilitação para "Menina de Ouro" é que antigos infortúnios na vida dos personagens recebem apenas menção indireta, não havendo "flashbacks" ou explicações em demasia. Supostamente, o espectador irá deduzindo por si mesmo o que cada evento da história foi capaz de evocar na memória dos personagens. Ao mesmo tempo, o filme quer deixar tudo bem explicado para a platéia.
Dessa ambigüidade, justamente, nasce o jogo entre o treinador e seu auxiliar, entre Clint Eastwood e Morgan Freeman: um explicará à platéia tudo o que o outro agüenta em silêncio. Por isso, a meu ver, a pose de "durão sensível" decorre menos da substância humana dos personagens e mais da duplicidade emocional do filme, que não abre mão da obviedade lacrimosa e, simultaneamente, flerta com a contenção estética.
Quantidades equivalentes de sofrimento contido se deixam perceber em "Ray", outro filme que concorreu ao Oscar. Também neste caso se oscila entre as desgraças mostradas na tela e as dores silenciadas do personagem. O interesse em fazer de Jamie Foxx um clone visual perfeito do biografado sem dúvida diminuiu o poder de introspecção que o filme poderia ter.
Mas "Ray" pelo menos dá para o gasto; não me senti manipulado, e a história de uma pessoa real, ainda que repleta de acidentes e desgraças, inspira mais do que lágrimas: inspira respeito, coisa que as personagens de um dramalhão como "Menina de Ouro" não merecem nem um pouco.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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