São Paulo, segunda, 2 de março de 1998

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"Enciclopédia do Humor Judaico' é mais de risos que de gargalhadas

SÉRGIO MALBERGIER
da Redação

A "Enciclopédia do Humor Judaico" tem como base fazer graça do sofrimento pelo qual passou o povo judeu. Como o nosso Carnaval exuberante, criado por brasileiros descendentes de escravos, o humor judaico nasceu de grandes dificuldades e opressão.
Esta "Enciclopédia", do americano Henry D. Spalding (Editora e Livraria Sêfer, 320 págs., R$ 35), é uma boa amostra desse mundo, mais de risos reflexivos do que de gargalhadas instantâneas. Um humor que é mais filosófico do que palhaço, unindo comédia e tragédia, e que serve para enfrentar e contornar as dificuldades, não para se esbaldar de rir.
Como a anedota do trabalhador que, ao voltar para casa depois do serviço, é agredido ao ser confundido com um tal de Meyer. Ao se erguer do chão, ele começa a rir. "Meyer, do que você está rindo?", pergunta o agressor. "É de você que eu estou rindo. Eu não sou o Meyer!"
Se as piadas coletadas por Spalding são uma boa introdução ao espírito do humor judaico, o banquete tem pratos mais finos. Para quem quer ir às raízes, comece pelo básico: a Bíblia. É a primeira fonte judaica de, entre outras coisas, humor.
Como no primeiro livro de Reis, quando o profeta Elias troça dos sacerdotes de Baal -"Gritem mais alto pois ele (Baal) é um deus e talvez esteja falando em alguma estalagem, ou dorme e necessita que o acordem."
Ou em Isaías, quando o profeta descreve um marceneiro que usa a madeira para esculpir um deus e se prostrar diante dele e depois usa o resto do toco como lenha (o judaísmo proíbe a adoração de estátuas).
Também outro livro básico do judaísmo, o Talmud, compilado no século 3º, traz suas pérolas: "Quando falta oportunidade ao ladrão, ele é condenado à honestidade", fonte do popular "a ocasião faz o ladrão". Ou, "Contra a ignorância não há remédio". E ainda, "É melhor um grão de pimenta do que uma cesta cheia de abóboras".
Daí em diante foi uma sucessão de grandes comediantes, criando um humor que talvez tenha como principal característica a auto-ironia. O iídiche, a língua falada pelos judeus da Europa Oriental -uma mistura de alemão com hebraico e aramaico, entre outros ingredientes-, tem uma infinidade de termos satíricos e irônicos. Língua urbana por excelência, das ruas e dos guetos, do oprimido esperto, ela quase não tem palavras para animais e aves, ou um vocabulário militar.
Quase extinto hoje, por causa do Holocausto nazista e da preponderância do hebraico em Israel, o iídiche é uma língua de resignação e sofrimento, contrabalançados pelo humor, intensa ironia e superstição. O prêmio Nobel Isaac Bashevis Singer (1904-91), um de seus maiores mestres, notou que era a única língua nunca falada por homens no poder.
Mas a literatura iídiche, exceto Singer, é uma raridade em nossas editoras. Até o mais importante autor iídiche, o grande Scholem Aleichem (1859-1916), é raramente encontrado nas livrarias.
Aleichem é chamado de "o Mark Twain judeu". Quando os dois se encontraram, Twain (1835-1910) não perdeu a oportunidade e se intitulou "o Sholom Aleichem americano". A autobiografia de Aleichem, "Vindo da Feira", inédita em português, é uma obra-prima da auto-ironia.
Vindo para este século, encontramos nos EUA os Irmãos Marx, principalmente Groucho (1890-1977), autor de outra engraçadíssima autobiografia, "Groucho e Eu" (Marco Zero Editora). Groucho se colocava no típico papel do "coitado", de quem está por baixo e surge para perturbar o mundo dos bacanas.
Woody Allen é outro exemplo de auto-ironia, mas com traços mais modernosos. E há outras vertentes, como o humor ácido e devastador do escritor americano Philip Roth.
A "Enciclopédia" é louvável como uma introdução a esse rico repertório de risos filosóficos. São pequenas anedotas reunidas ao longo da vida por Spalding, jornalista, publicitário e muitas outras coisas, filho de imigrantes judeus, nascido no East Side de Nova York, em 1917, e que largou os estudos aos 12 anos.
Como uma enciclopédia, o livro pode ser aberto em qualquer página para se desfrutar de seus pequenos verbetes humorísticos, divididos em 39 capítulos temáticos ("Milagres", "Religião", "Coma Alguma Coisinha", "Cultura", "Crianças" etc.) e um abrangente glossário, muito útil aos não familiarizados com o tema.
Há até uma subseção sobre o Terceiro Reich alemão, a maior das muitas catástrofes judaicas, onde Hitler e comparsas são tratados de forma irônica.
Como na anedota em que Hitler, preocupado com os rumos da guerra, manda chamar o maior quiromante do país, um judeu, que é trazido do campo de extermínio de Auschwitz. Hitler lhe pergunta quando vai morrer. Zelig Altman examina a sua mão e retruca que as linhas não estão muito nítidas. Ele só pode dizer com certeza que, "não importa o dia em que morra, será num feriado judaico".



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