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"Enciclopédia do Humor Judaico' é mais de risos que de gargalhadas
SÉRGIO MALBERGIER
da Redação
A "Enciclopédia do Humor Judaico" tem como base fazer graça
do sofrimento pelo qual passou o
povo judeu. Como o nosso Carnaval exuberante, criado por brasileiros descendentes de escravos, o
humor judaico nasceu de grandes
dificuldades e opressão.
Esta "Enciclopédia", do americano Henry D. Spalding (Editora e
Livraria Sêfer, 320 págs., R$ 35), é
uma boa amostra desse mundo,
mais de risos reflexivos do que de
gargalhadas instantâneas. Um humor que é mais filosófico do que
palhaço, unindo comédia e tragédia, e que serve para enfrentar e
contornar as dificuldades, não para se esbaldar de rir.
Como a anedota do trabalhador
que, ao voltar para casa depois do
serviço, é agredido ao ser confundido com um tal de Meyer. Ao se
erguer do chão, ele começa a rir.
"Meyer, do que você está rindo?",
pergunta o agressor. "É de você
que eu estou rindo. Eu não sou o
Meyer!"
Se as piadas coletadas por Spalding são uma boa introdução ao
espírito do humor judaico, o banquete tem pratos mais finos. Para
quem quer ir às raízes, comece pelo básico: a Bíblia. É a primeira
fonte judaica de, entre outras coisas, humor.
Como no primeiro livro de Reis,
quando o profeta Elias troça dos
sacerdotes de Baal -"Gritem
mais alto pois ele (Baal) é um deus
e talvez esteja falando em alguma
estalagem, ou dorme e necessita
que o acordem."
Ou em Isaías, quando o profeta
descreve um marceneiro que usa a
madeira para esculpir um deus e
se prostrar diante dele e depois usa
o resto do toco como lenha (o judaísmo proíbe a adoração de estátuas).
Também outro livro básico do
judaísmo, o Talmud, compilado
no século 3º, traz suas pérolas:
"Quando falta oportunidade ao
ladrão, ele é condenado à honestidade", fonte do popular "a ocasião faz o ladrão". Ou, "Contra a
ignorância não há remédio". E
ainda, "É melhor um grão de pimenta do que uma cesta cheia de
abóboras".
Daí em diante foi uma sucessão
de grandes comediantes, criando
um humor que talvez tenha como
principal característica a auto-ironia. O iídiche, a língua falada pelos
judeus da Europa Oriental -uma
mistura de alemão com hebraico e
aramaico, entre outros ingredientes-, tem uma infinidade de termos satíricos e irônicos. Língua
urbana por excelência, das ruas e
dos guetos, do oprimido esperto,
ela quase não tem palavras para
animais e aves, ou um vocabulário
militar.
Quase extinto hoje, por causa do
Holocausto nazista e da preponderância do hebraico em Israel, o
iídiche é uma língua de resignação
e sofrimento, contrabalançados
pelo humor, intensa ironia e superstição. O prêmio Nobel Isaac
Bashevis Singer (1904-91), um de
seus maiores mestres, notou que
era a única língua nunca falada
por homens no poder.
Mas a literatura iídiche, exceto
Singer, é uma raridade em nossas
editoras. Até o mais importante
autor iídiche, o grande Scholem
Aleichem (1859-1916), é raramente
encontrado nas livrarias.
Aleichem é chamado de "o
Mark Twain judeu". Quando os
dois se encontraram, Twain
(1835-1910) não perdeu a oportunidade e se intitulou "o Sholom
Aleichem americano". A autobiografia de Aleichem, "Vindo da
Feira", inédita em português, é
uma obra-prima da auto-ironia.
Vindo para este século, encontramos nos EUA os Irmãos Marx,
principalmente Groucho
(1890-1977), autor de outra engraçadíssima autobiografia, "Groucho e Eu" (Marco Zero Editora).
Groucho se colocava no típico papel do "coitado", de quem está
por baixo e surge para perturbar o
mundo dos bacanas.
Woody Allen é outro exemplo de
auto-ironia, mas com traços mais
modernosos. E há outras vertentes, como o humor ácido e devastador do escritor americano Philip
Roth.
A "Enciclopédia" é louvável como uma introdução a esse rico repertório de risos filosóficos. São
pequenas anedotas reunidas ao
longo da vida por Spalding, jornalista, publicitário e muitas outras
coisas, filho de imigrantes judeus,
nascido no East Side de Nova
York, em 1917, e que largou os estudos aos 12 anos.
Como uma enciclopédia, o livro
pode ser aberto em qualquer página para se desfrutar de seus pequenos verbetes humorísticos, divididos em 39 capítulos temáticos
("Milagres", "Religião", "Coma
Alguma Coisinha", "Cultura",
"Crianças" etc.) e um abrangente
glossário, muito útil aos não familiarizados com o tema.
Há até uma subseção sobre o
Terceiro Reich alemão, a maior
das muitas catástrofes judaicas,
onde Hitler e comparsas são tratados de forma irônica.
Como na anedota em que Hitler,
preocupado com os rumos da
guerra, manda chamar o maior
quiromante do país, um judeu,
que é trazido do campo de extermínio de Auschwitz. Hitler lhe
pergunta quando vai morrer. Zelig
Altman examina a sua mão e retruca que as linhas não estão muito nítidas. Ele só pode dizer com
certeza que, "não importa o dia
em que morra, será num feriado
judaico".
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