|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CLÁSSICO
Ícone do neo-realismo apresenta radiografia da sociedade italiana
Lançamento inclui "Ladrões de Bicicleta" e filme sobre De Sica
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
A esta altura, todo mundo já
conhece o enredo de "Ladrões de Bicicleta" (1948), clássico
absoluto do neo-realismo italiano, só comparável em importância a "Roma Cidade Aberta", de
Roberto Rossellini.
Na Roma devastada do pós-guerra, um pai de família desempregado, Antonio, consegue uma
vaga como colador de cartazes.
Para isso, sua bicicleta é instrumento de trabalho indispensável.
Em seu primeiro dia no emprego,
roubam-lhe a bicicleta. O restante
do filme é a busca de Antonio pela
preciosidade roubada.
A extrema singeleza desse entrecho é ilusória. Ao acompanhar
a odisséia do protagonista pelas
ruas de Roma, o diretor Vittorio
de Sica e seu fiel roteirista Cesare
Zavattini (o verdadeiro ideólogo
do neo-realismo) realizam uma
radiografia da sociedade italiana
da época. Nada escapa: o desemprego, a Igreja, os sindicatos, a criminalidade, o misticismo popular
e até o futebol, cuja paixão emoldura o trágico desfecho.
A abordagem, entretanto, não é
meramente documental ou sociológica. Existe uma idéia ao mesmo tempo poética e política
guiando a câmera de De Sica: a
idéia do anonimato do indivíduo,
do seu caráter intercambiável, para não dizer descartável, na sociedade capitalista.
A seqüência mais notável, nesse
sentido, é aquela em que Antonio
e alguns amigos vasculham um
mercado aberto de bicicletas e peças usadas, uma espécie de gigantesco desmanche de bicicletas
roubadas. Ali, a câmera, em longos travellings, passeia por bancadas de incontáveis selins, miríades de pedais, rodas sem fim.
A cena é análoga à da queixa de
Antonio na delegacia, onde um
funcionário o atende diante de
uma estante com milhares de boletins de ocorrência semelhantes.
Bicicletas, peças, homens -tudo
é impessoal, tudo é número.
Contado assim, o filme soa como um libelo anti-industrial. Mas
um detalhe crucial lhe dá uma dimensão moral mais elevada e,
certamente, é a principal razão de
seu impacto: a presença do filho
de Antonio, Bruno (Enzo Staiola),
o tempo todo junto ao pai, como a
lembrá-lo de sua humanidade.
Extras
Uma curiosidade reveladora:
produtores americanos topavam
bancar o filme, desde que o protagonista fosse Cary Grant. De Sica
rejeitou a idéia, e optou por Lamberto Maggiorani, um operário
fabril de Roma.
Nos extras do DVD, há um documentário sobre De Sica em que
o diretor, simpático e canastrão
como quando trabalhava de ator,
comenta seus filmes, conversa
com atores e roteiristas. Alguns
registros são raros e valiosos.
Num deles vemos De Sica estapear Enzo Staiola para fazê-lo
chorar na cena final. A imagem
desmente o próprio diretor, que
em "Nós que Nos Amávamos
Tanto", de Ettore Scola, dizia ter
usado um artifício sagaz para arrancar lágrimas do menino. Há
ainda uma reportagem sobre a
restauração do clássico e entrevistas, a melhor delas com a veterana
roteirista Suso Cecchi D'Amico.
Ladrões de Bicicleta (Edição Especial)
Direção: Vittorio de Sica
Distribuidora: Versátil (R$ 47,90, em
média)
Texto Anterior: Acrobacias fazem parte do treinamento Próximo Texto: Western: "Proposta" traz aspereza de Nick Cave Índice
|