São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CLÁSSICO

Ícone do neo-realismo apresenta radiografia da sociedade italiana

Lançamento inclui "Ladrões de Bicicleta" e filme sobre De Sica

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

A esta altura, todo mundo já conhece o enredo de "Ladrões de Bicicleta" (1948), clássico absoluto do neo-realismo italiano, só comparável em importância a "Roma Cidade Aberta", de Roberto Rossellini.
Na Roma devastada do pós-guerra, um pai de família desempregado, Antonio, consegue uma vaga como colador de cartazes. Para isso, sua bicicleta é instrumento de trabalho indispensável. Em seu primeiro dia no emprego, roubam-lhe a bicicleta. O restante do filme é a busca de Antonio pela preciosidade roubada.
A extrema singeleza desse entrecho é ilusória. Ao acompanhar a odisséia do protagonista pelas ruas de Roma, o diretor Vittorio de Sica e seu fiel roteirista Cesare Zavattini (o verdadeiro ideólogo do neo-realismo) realizam uma radiografia da sociedade italiana da época. Nada escapa: o desemprego, a Igreja, os sindicatos, a criminalidade, o misticismo popular e até o futebol, cuja paixão emoldura o trágico desfecho.
A abordagem, entretanto, não é meramente documental ou sociológica. Existe uma idéia ao mesmo tempo poética e política guiando a câmera de De Sica: a idéia do anonimato do indivíduo, do seu caráter intercambiável, para não dizer descartável, na sociedade capitalista.
A seqüência mais notável, nesse sentido, é aquela em que Antonio e alguns amigos vasculham um mercado aberto de bicicletas e peças usadas, uma espécie de gigantesco desmanche de bicicletas roubadas. Ali, a câmera, em longos travellings, passeia por bancadas de incontáveis selins, miríades de pedais, rodas sem fim.
A cena é análoga à da queixa de Antonio na delegacia, onde um funcionário o atende diante de uma estante com milhares de boletins de ocorrência semelhantes. Bicicletas, peças, homens -tudo é impessoal, tudo é número.
Contado assim, o filme soa como um libelo anti-industrial. Mas um detalhe crucial lhe dá uma dimensão moral mais elevada e, certamente, é a principal razão de seu impacto: a presença do filho de Antonio, Bruno (Enzo Staiola), o tempo todo junto ao pai, como a lembrá-lo de sua humanidade.

Extras
Uma curiosidade reveladora: produtores americanos topavam bancar o filme, desde que o protagonista fosse Cary Grant. De Sica rejeitou a idéia, e optou por Lamberto Maggiorani, um operário fabril de Roma.
Nos extras do DVD, há um documentário sobre De Sica em que o diretor, simpático e canastrão como quando trabalhava de ator, comenta seus filmes, conversa com atores e roteiristas. Alguns registros são raros e valiosos. Num deles vemos De Sica estapear Enzo Staiola para fazê-lo chorar na cena final. A imagem desmente o próprio diretor, que em "Nós que Nos Amávamos Tanto", de Ettore Scola, dizia ter usado um artifício sagaz para arrancar lágrimas do menino. Há ainda uma reportagem sobre a restauração do clássico e entrevistas, a melhor delas com a veterana roteirista Suso Cecchi D'Amico.


Ladrões de Bicicleta (Edição Especial)     
Direção:
Vittorio de Sica
Distribuidora: Versátil (R$ 47,90, em média)



Texto Anterior: Acrobacias fazem parte do treinamento
Próximo Texto: Western: "Proposta" traz aspereza de Nick Cave
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.