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NELSON ASCHER
Quando olhaste bem nos olhos meus
A poesia dispõe de uma variedade temática
com a qual os letristas podem apenas sonhar
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QUANDO SE pergunta qual tipo
de prosa narrativa é melhor,
mais importante, a resposta
só pode ser: depende. Do quê? Antes
de mais nada, de onde e quando. Em
um país qualquer, durante um período de bons contistas e romancistas medíocres, malgrado a grandeza
potencial do romance em seu ápice,
o eleito será o conto. Já na Idade
Média, antes que o romance surgisse, quando o conto competia com
narrativas versificadas, a dúvida
nem se colocava. E isso se repete no
caso de outras possíveis comparações: pintura vs. gravura vs. escultura, digamos, ou ópera vs. música instrumental.
Quem concorde que, em termos
críticos, a poesia lírica por um lado e
a canção popular e sua letra, por outro, são, no mínimo, dois gêneros
distintos e, no limite, duas artes diferentes -se bem que com muitas semelhanças e coincidências- precisa ter em mente que suas relativas relevâncias mudam de lugar para lugar, de época para época. É algo a se enfatizar, porque a discussão técnica a respeito do que aproxima ou separa ambas se mescla a toda hora com a de sua importância artística,
social, de seu nível de realização e de
sua dignidade estética.
Com freqüência, aqueles que insistem na separação entre as duas
estão se referindo não a divergências materiais, estruturais ou históricas, mas, sim, apegando-se ao estado em que a hierarquia relativa das
artes se encontrava em dias pregressos, saudosos de quando a poesia é
que era a "arte de verdade", enquanto a canção não passava de entretenimento (debate quase idêntico,
aliás, contrapunha, no início do século passado, o teatro, considerado
sério, a uma nova invenção: o cinema). E muitos dos que buscam confundir letra e poesia o fazem para
reafirmar a qualidade da primeira.
Segundo esse prisma, que aceita
mudanças históricas, não faz, claro,
sentido remeter a eras ou lugares
distantes nos quais as coisas transcorriam de maneira diversa. Que os
inuits da Groenlândia ou os maoris
da Nova Zelândia dispusessem apenas de poesia cantada em nada altera o cenário brasileiro dos anos 60.
Ainda deve haver um ou outro kirguiz da Ásia Central capaz de cantar
de memória o "Mánas", epopéia nacional de seu povo (criação coletiva
que, nas versões mais extensas, chega a cem mil versos), parando apenas para comer, dormir e aliviar suas
necessidades orgânicas. Nenhum
autor, porém, compõe agora poemas épicos para que sejam cantados,
muito menos na rádio ou na TV. É
difícil fazer de conta que a escrita, a
impressão com tipos móveis e o
computador pessoal nunca apareceram e, se bem que um criador hoje
possa aprender com o que se fazia
antes, nosso mundo é o moderno.
Talvez seja mais ilustrativo, no entanto, examinarmos um exemplo
concreto. Um leitor que desconheça
Chico Buarque e não tenha ouvido
"Atrás da Porta" (1972) lê numa antologia o seguinte verso: "Quando
olhaste bem nos olhos meus". Como
é que ele poderá saber se este foi feito para ser impresso ou gravado?
Ora, vendo a data ele pode concluir
que há estranhezas poéticas na linha. Os poetas dos anos 70 se esforçavam, em geral, para usar a terceira em vez da segunda do singular que,
por seu turno, era corriqueiramente
admitida na MPB. O mesmo vale para a posposição do possessivo, em
especial se seu intuito é o de rimar.
Em outras palavras, naqueles
anos (como hoje), os próprios registros do português brasileiro utilizados, seja em poemas ou letras, já haviam divergido bastante, pois as canções admitiam arcaísmos, volteios
frasais e até palavras que não cabiam
mais na poesia contemporânea. Elas
usavam recursos quase abolidos na
poesia escrita, tais como o refrão, repetição de estrofes ou rimas regulares, ao menos as mais óbvias.
Quanto à poesia, ela se valia de um
leque de recursos que tampouco haviam sido aclimatados à MPB, a começar pelo verso livre, mas continuando pela visualidade, pela escolha lexical etc. Ou seja, mesmo
olhando o texto diretamente no papel, um leitor informado das características estilísticas de cada gênero
ou arte seria, em princípio, capaz de
identificar, raras exceções à parte, se
era letra ou poesia.
Se há, todavia, uma diferença central que torna hoje em dia fácil distinguir entre ambos, o texto de uma
canção e um poema propriamente
dito, trata-se do tema. As letras podem ser sobre tudo, mas é inegável
que sua maioria esmagadora fala de
amor (romântico ou físico, hetero
ou homo, tanto faz). A poesia, se
conta com um público muito menor, dispõe (quem sabe por isso
mesmo) de uma variedade temática
com a qual os letristas podem apenas sonhar.
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