São Paulo, segunda-feira, 02 de abril de 2007

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NELSON ASCHER

Quando olhaste bem nos olhos meus


A poesia dispõe de uma variedade temática com a qual os letristas podem apenas sonhar

QUANDO SE pergunta qual tipo de prosa narrativa é melhor, mais importante, a resposta só pode ser: depende. Do quê? Antes de mais nada, de onde e quando. Em um país qualquer, durante um período de bons contistas e romancistas medíocres, malgrado a grandeza potencial do romance em seu ápice, o eleito será o conto. Já na Idade Média, antes que o romance surgisse, quando o conto competia com narrativas versificadas, a dúvida nem se colocava. E isso se repete no caso de outras possíveis comparações: pintura vs. gravura vs. escultura, digamos, ou ópera vs. música instrumental.
Quem concorde que, em termos críticos, a poesia lírica por um lado e a canção popular e sua letra, por outro, são, no mínimo, dois gêneros distintos e, no limite, duas artes diferentes -se bem que com muitas semelhanças e coincidências- precisa ter em mente que suas relativas relevâncias mudam de lugar para lugar, de época para época. É algo a se enfatizar, porque a discussão técnica a respeito do que aproxima ou separa ambas se mescla a toda hora com a de sua importância artística, social, de seu nível de realização e de sua dignidade estética.
Com freqüência, aqueles que insistem na separação entre as duas estão se referindo não a divergências materiais, estruturais ou históricas, mas, sim, apegando-se ao estado em que a hierarquia relativa das artes se encontrava em dias pregressos, saudosos de quando a poesia é que era a "arte de verdade", enquanto a canção não passava de entretenimento (debate quase idêntico, aliás, contrapunha, no início do século passado, o teatro, considerado sério, a uma nova invenção: o cinema). E muitos dos que buscam confundir letra e poesia o fazem para reafirmar a qualidade da primeira.
Segundo esse prisma, que aceita mudanças históricas, não faz, claro, sentido remeter a eras ou lugares distantes nos quais as coisas transcorriam de maneira diversa. Que os inuits da Groenlândia ou os maoris da Nova Zelândia dispusessem apenas de poesia cantada em nada altera o cenário brasileiro dos anos 60.
Ainda deve haver um ou outro kirguiz da Ásia Central capaz de cantar de memória o "Mánas", epopéia nacional de seu povo (criação coletiva que, nas versões mais extensas, chega a cem mil versos), parando apenas para comer, dormir e aliviar suas necessidades orgânicas. Nenhum autor, porém, compõe agora poemas épicos para que sejam cantados, muito menos na rádio ou na TV. É difícil fazer de conta que a escrita, a impressão com tipos móveis e o computador pessoal nunca apareceram e, se bem que um criador hoje possa aprender com o que se fazia antes, nosso mundo é o moderno.
Talvez seja mais ilustrativo, no entanto, examinarmos um exemplo concreto. Um leitor que desconheça Chico Buarque e não tenha ouvido "Atrás da Porta" (1972) lê numa antologia o seguinte verso: "Quando olhaste bem nos olhos meus". Como é que ele poderá saber se este foi feito para ser impresso ou gravado? Ora, vendo a data ele pode concluir que há estranhezas poéticas na linha. Os poetas dos anos 70 se esforçavam, em geral, para usar a terceira em vez da segunda do singular que, por seu turno, era corriqueiramente admitida na MPB. O mesmo vale para a posposição do possessivo, em especial se seu intuito é o de rimar.
Em outras palavras, naqueles anos (como hoje), os próprios registros do português brasileiro utilizados, seja em poemas ou letras, já haviam divergido bastante, pois as canções admitiam arcaísmos, volteios frasais e até palavras que não cabiam mais na poesia contemporânea. Elas usavam recursos quase abolidos na poesia escrita, tais como o refrão, repetição de estrofes ou rimas regulares, ao menos as mais óbvias.
Quanto à poesia, ela se valia de um leque de recursos que tampouco haviam sido aclimatados à MPB, a começar pelo verso livre, mas continuando pela visualidade, pela escolha lexical etc. Ou seja, mesmo olhando o texto diretamente no papel, um leitor informado das características estilísticas de cada gênero ou arte seria, em princípio, capaz de identificar, raras exceções à parte, se era letra ou poesia.
Se há, todavia, uma diferença central que torna hoje em dia fácil distinguir entre ambos, o texto de uma canção e um poema propriamente dito, trata-se do tema. As letras podem ser sobre tudo, mas é inegável que sua maioria esmagadora fala de amor (romântico ou físico, hetero ou homo, tanto faz). A poesia, se conta com um público muito menor, dispõe (quem sabe por isso mesmo) de uma variedade temática com a qual os letristas podem apenas sonhar.

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