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São Paulo, sexta-feira, 02 de maio de 2003

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CINEMA/ESTRÉIA

"BICICLETAS DE PEQUIM"

Longa expõe o país entre comunismo e capitalismo

Desejos e conflitos emergem na estranha nova China

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Crescemos ouvindo falar das bicicletas de Pequim, vendo fotos das ruas povoadas de bicicletas etc. Pois bem, "Bicicletas de Pequim", filme de Wang Xiaoshuai, tem algo de novo a nos dizer sobre elas e sobre a cidade.
Em primeiro lugar, elas já não reinam absolutas nas ruas e, embora tratadas com civilidade, dividem espaço com um número bastante considerável de automóveis.
A informação contida nessa notação é vasta. Na Pequim de hoje, não há mais retratos de Mao, o velho comunismo puro e duro de outros tempos cede lugar a uma vida metropolitana movimentada e as diferenças de classe que, se parecem brincadeira comparadas ao Brasil, por exemplo, existem.
Elas ficam claras na história do jovem Guei, interiorano que consegue um emprego de entregador na capital, mas depois de algum tempo tem a sua bicicleta roubada. Um tanto burro, mas tenaz, Guei parte atrás de seu veículo (e, portanto, de seu emprego).
Topa um dia com a bicicleta nas mãos de Jian, um estudante que não a roubou, mas a comprou do ladrão. Daí surge o conflito, que Xiaoshuai leva com brio, pois, se o espectador é convidado a partilhar o drama de Guei, em seguida é introduzido ao "outro lado", o de Jian. Este não roubou a bicicleta, mas roubou dinheiro do pai para comprá-la. Possuir uma bicicleta é, para ele, um modo de se integrar à turma, ter namorada etc, um apanágio de classe social.
E assim Xiaoshuai nos introduz não à luta de classes, mas ao estranho novo Estado chinês, onde há patrões e empregados, onde funcionárias podem roubar roupas da patroa e dar a impressão de que compõem a classe favorecida.
É nesse novo mundo que o mal se instala. Jian é o agente mais evidente do mal. Mas Xiaoshuai observa-o não como sinal de deterioração das relações nesse Estado híbrido, que guarda do capitalismo as desigualdades e do comunismo a tendência repressiva, mas como uma espécie de fatalidade a que está sujeita a humanidade: uma bicicleta ou um par de sapatos podem despertar o mal.
A humildade do objeto desejado não importa, e sim o desejo, a cobiça de que está investido. Assim, o filme dá a impressão de mostrar as transformações sociais e seus conflitos, na China progressista da virada de século, bem mais do que julgá-las. Estamos longe do paraíso um dia prometido pelos comunistas, mas não estamos no inferno. Xiaoshuai não idealiza os homens: eles mentem, roubam, destroem. Não há regime político, paz social ou progresso que nos altere profundamente.
Uma visada pessimista, sem dúvida, mas ajuda a afirmar a inquietação e a vitalidade que movem o cinema chinês contemporâneo -e aqui não há como distinguir China continental, Taiwan ou Hong Kong: vale para todos.


Bicicletas de Pequim
Beijing Bicycle
   
Produção: China/Taiwan/França, 2001
Direção: Wang Xiaoshuai
Com: Lin Cui, Xun Zhou, Yuanyuan Gao
Onde: em cartaz no Espaço Unibanco 1, em São Paulo



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