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CARLOS HEITOR CONY
Da arte de falar mal
Durante anos, mantive no
"Correio da Manhã", num
canto da capa do segundo caderno, um espaço assim intitulado:
"Da arte de falar mal". Até hoje
me perguntam a razão de uma
rubrica que, entre outras coisas,
me levou para a prisão seis vezes
por delito de opinião. Num dos
interrogatórios a que fui submetido, o coronel que presidia o IPM
quis saber por que eu falava tão
mal do regime militar que então
se instalava. Eu respondi que não
podia mudar o título da minha
coluna, falando bem de qualquer
coisa.
Mas a idéia do título não foi minha. Devo-a a Maura Cançado
Lopes, colega no "Suplemento
Dominical" do "Jornal do Brasil",
um caderno dedicado às artes,
que, depois de algum tempo, já
em sua fase terminal, saía pontualmente aos sábados. Ela escrevia contos maravilhosos, chamou
a atenção das editoras, teve dois
livros publicados, que receberam
crítica consagradora. "Hospício É
Deus" foi colocado à altura de
Clarice Lispector, que aliás a admirava. Escreveu também "O Sofredor do Ver" -um dos melhores que já li em minha vida.
Maura namorava Luiz Reis, o
Cabeleira, parceiro de Haroldo
Barbosa em "Cara de Palhaço" e
"Momentos São", dois sucessos
absolutos daquela época, gravados por Elizeth Cardoso. Um dia,
quis sair comigo. Eu tinha uma
Hudson conversível, ela me perguntou se eu era rico, se eu podia
comprar um navio. Respondi que
sim -e ela colocou essa cena em
seu romance, com meu nome e
tudo.
Mas foi nessa mesma tarde que
ela me fez parar na Urca, diante
da baía que entardecia, e me explicou: "Chamei você para falarmos mal de todo mundo. Falar
mal é uma arte".
Nem lembro mais de quem falamos mal. Creio que não tenha escapado ninguém, a começar pelo
pessoal do SDJB: Décio Pignatari,
Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos, Walmir
Ayala, Mário Pedrosa, Carlinhos
de Oliveira, os irmãos Campos,
José Lino Grünewald, Assis Brasil,
José Louzeiro, não abrimos exceção nem para o doce Mário Faustino, que havia morrido dias antes. Todos nossos amigos, amigos
queridos por sinal.
Mais ou menos na mesma época, recebi recado de um vizinho
do Posto 6 que estava gripado, ardendo em febre, mas queria me
ver. Ele não tinha carro e eu guardava o meu na vaga de sua garagem; nunca me cobrou aluguel
nem carona, pois adorava andar
de ônibus.
Fui. Encontrei-o na cama, lendo um troço complicado que depois vim a saber que era a gramática de um dialeto do Vietnã. Embaixador aposentado, escritor de
sucesso, ele gostava de aprender
coisas inúteis e com elas escrevia
obras-primas.
- Estou aqui -disse. -Algum recado?
- Não. Há dias que não falo
mal de ninguém. Chamei-o para
isso.
Três horas depois, já sem febre,
ele me levou até a porta de seu
apartamento. Com os olhos de
gato acesos, olhou-me severamente e, com o orgulho que lhe
era próprio (referia-se a si mesmo
sempre na terceira pessoa), admitiu:
- Puxa! Como falamos mal de
todo mundo!
Morreria em breve, poucas horas depois de um discurso que levou mais de três anos para ter coragem de fazer e no qual só falou
bem dos outros. Acho que o sacrifício lhe custou a vida.
Foi ele que me ensinou a regra
fundamental da arte de falar mal:
"Só fale mal dos ausentes, nunca
dos presentes". Pode parecer uma
obviedade. Mas o meu amigo e vizinho era também acusado de obviedades geniais em sua obra literária. Uma de suas frases mais famosas ainda é citada: "Viver é
muito perigoso".
Pulando no tempo que pulou
sobre todos. Morreu o jornal em
que trabalhava, morreu a Maura,
morreu o meu amigo ex-embaixador, morreu até o doce Mário
Faustino num desastre de avião.
Ninguém é imortal, com exceção
de uma amiga famosa, romancista histórica, que me quis tornar
imortal como ela.
Hoje, não mais se fazem aquelas constrangedoras visitas aos
imortais, antes que eles morram.
Pelo contrário, a afobação de um
candidato à imortalidade é letal.
Adoentada, sem poder sair de casa, ela me pediu pela sobrinha e
secretária que fosse à sua casa
buscar o seu voto. É evidente que
fui, pois muito queria vê-la.
Ela me recebeu nordestinamente afável. Sentada em sua cadeira
de palhinha, com ares de senhora-de-engenho, esticou-me o envelope branco:
- Toma. Aqui estão os meus
votos. Agora não falemos mais
em literatura. Vamos falar mal de
todo mundo!
Também saí tarde de sua casa.
Não deixamos pedra sobre pedra
e, seguindo o conselho do ex-embaixador, só falamos mal dos ausentes, que era o restante da humanidade, pois em sua sala só
havia a visitada e o visitante.
Por essas e outras, sempre admirei o Antônio Callado, que definia os personagens do nosso
tempo em duas categorias: os que
tinham boa presença e os que tinham péssima ausência. Boa presença era quando todos falavam
bem de um sujeito presente. Péssima ausência era quando, ausente, o sujeito monopolizava a conversa, cada qual juntando um
graveto para queimar na alegre
pira da maledicência.
E, com aquele jeito de único inglês da vida real, Callado completava a sua frase: "O mais gostoso
de tudo isso é que o bom presente
e o mau ausente são sempre a
mesma pessoa".
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