São Paulo, segunda-feira, 02 de maio de 2005

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NELSON ASCHER

A consciência das palavras

O poeta inglês Basil Bunting (1900-85) observou certa vez que crianças não andam: elas dançam. E, de fato, o passo regular, repetitivo e monótono não é algo que pratiquem por vontade própria antes de determinada idade. Andar, para elas, não se resume em se deslocar de um ponto a outro da forma mais prática possível e gastando um mínimo de energia: se é mesmo necessário chegar a algum lugar, por que não se divertir no percurso?
Coincidência ou não, caso chamemos de infância da linguagem a longa era que precede a invenção e a difusão da escrita, constataremos que, antes de alcançar a maturidade, ela se comportava de modo similar. Não há como saber ainda (e esse "ainda" envolve uma boa dose de otimismo) quando, onde e por que nossa espécie começou a tagarelar. Talvez a linguagem precedesse a fala.
Afinal, segundo alguns neurocientistas, o cérebro utiliza internamente algo que chamam de "mentalês", uma língua que não corresponde a nenhuma das que se usam na comunicação entre pessoas, embora se manifeste parcialmente em cada uma delas. Depois que uma mensagem qualquer se formula em "mentalês", se for o caso de transmiti-la, ela é traduzida para as línguas corriqueiras: português, tagalo, quechua etc.
Ora, não existe nenhuma boa razão para supor que esse código encefálico esteja necessariamente vinculado a suas manifestações orais. Ele pode perfeitamente ter servido ao raciocínio individual, solitário antes que ocorresse a alguém pô-lo a serviço da comunicação interpessoal. Quem observa de mente aberta os animais domésticos sabe que todos os mamíferos (e, às vezes, inclusive alguns humanos) pensam.
Não há nada de instintivo no comportamento de um felino que conduz seu proprietário rumo à geladeira e fica miando diante dela até que este lhe dê, digamos, o pedaço requerido de carne. Tampouco foi pré-registrado nos cromossomos de um cachorro que, se ele latir e se dirigir à porta da casa, seu dono (com certo esforço) enfim compreenderá que o bicho precisa visitar urgentemente a árvore da esquina. Que os animais em questão não recorram à linguagem articulada para nos transmitirem suas instruções decorre antes da anatomia de sua garganta e dos acasos da evolução. Mas que eles raciocinam, raciocinam.
É plausível, portanto, imaginar que nós também o fizéssemos antes de acharmos ou desenvolvermos um meio para informarmos os demais membros da espécie de nossas idéias ou, o que é mais freqüente, de sua ausência. Sem dúvida, a maior parte da linguagem que produzimos segue confinada à nossa caixa craniana e se desenrola sob a forma de monólogo interior. Quem sabe, a descoberta mesma da comunicabilidade desse monólogo não passe de um acidente darwiniano feliz ou infeliz e, seja como for, trata-se de um processo em andamento que, se não imperfeito, é decerto inacabado. Da multiplicidade dos idiomas aos perpétuos mal-entendidos no âmbito de cada qual, muito "ruído" aponta para a hipótese de que o entendimento seja um acidente que resulta sobretudo de uma seqüência incessante e insistente de tentativas e erros.
O estudioso Eric Havelock argumentou convincentemente que o nascimento da prosa está ligado à invenção prévia da escrita, em especial da escrita grega, a primeira a diferenciar claramente entre consoantes e vogais, permitindo a compreensão de palavras não conhecidas de antemão. Mais até do que a escrita, a maturidade da linguagem seria decorrência ou se encarnaria na prosa, pois esta já não seria tanto a mera gravação de uma manifestação oral num tipo distinto de material (que é como o autor qualifica as escritas anteriores ao alfabeto helênico), quanto uma maneira diferente e nova de pensar, ou seja, consistiria em pensar não oralmente, mas por escrito: raciocinar com tinta no papel, papiro ou pergaminho.
A prosa, nesse sentido restrito, equivaleria ao modo adulto de caminhar. Daí sua natureza intrinsecamente prática. Os exemplos mais puros de prosa são exatamente os mais despidos de qualquer aspecto estético e esses se encontram nos manuais do usuário de um automóvel, nos contratos de locação de um apartamento e outros textos semelhantes. O que importa neles é chegar de um ponto a outro sem desvios nem imprecisões. Ser clara e inequívoca é a qualidade mais amiúde atribuída à boa prosa.
Com a poesia, o que sucede é o contrário. As virtudes prosaicas são, potencialmente, defeitos poéticos e vice-versa. Se repetir sons é, na prosa, um vício, quando se faz poesia tal vício se transforma num recurso não raro obrigatório e que leva nomes como aliteração ou rima. Onde a prosa se compraz com contrastes claros e definições exatas, a poesia prefere elaborar nuances sutis. Principalmente, ela implica se divertir no caminho.
Mas há um momento em que as analogias cessam, deixam de ser úteis. Nem sempre a prosa aspira somente à comunicabilidade, e uma ilusão corrente é a de entrever na poesia apenas seus elementos pré-adultos de espontaneidade, uma ilusão nutrida por dois séculos de desconversa sobre a inspiração. Existe um grau superior de maturidade lingüística rumo ao qual convergem tanto a prosa como a poesia.
E o ponto de fuga onde se encontram, o da maturidade última, é igualmente aquele que, em outro contexto, Elias Canetti batizou de "consciência das palavras". Essa consciência é, antes de mais nada, a da lacuna, ou melhor, sua função principal reside em não deixar que nos esqueçamos de tudo o que se perde quando se traduz o monólogo interior em fala aparentemente comunicável.


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