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NELSON ASCHER
A consciência das palavras
O poeta inglês Basil Bunting (1900-85) observou certa vez que crianças não andam:
elas dançam. E, de fato, o passo
regular, repetitivo e monótono
não é algo que pratiquem por
vontade própria antes de determinada idade. Andar, para elas,
não se resume em se deslocar de
um ponto a outro da forma mais
prática possível e gastando um
mínimo de energia: se é mesmo
necessário chegar a algum lugar,
por que não se divertir no percurso?
Coincidência ou não, caso chamemos de infância da linguagem
a longa era que precede a invenção e a difusão da escrita, constataremos que, antes de alcançar a
maturidade, ela se comportava
de modo similar. Não há como
saber ainda (e esse "ainda" envolve uma boa dose de otimismo)
quando, onde e por que nossa espécie começou a tagarelar. Talvez
a linguagem precedesse a fala.
Afinal, segundo alguns neurocientistas, o cérebro utiliza internamente algo que chamam de
"mentalês", uma língua que não
corresponde a nenhuma das que
se usam na comunicação entre
pessoas, embora se manifeste parcialmente em cada uma delas.
Depois que uma mensagem qualquer se formula em "mentalês", se
for o caso de transmiti-la, ela é
traduzida para as línguas corriqueiras: português, tagalo, quechua etc.
Ora, não existe nenhuma boa
razão para supor que esse código
encefálico esteja necessariamente
vinculado a suas manifestações
orais. Ele pode perfeitamente ter
servido ao raciocínio individual,
solitário antes que ocorresse a alguém pô-lo a serviço da comunicação interpessoal. Quem observa
de mente aberta os animais domésticos sabe que todos os mamíferos (e, às vezes, inclusive alguns
humanos) pensam.
Não há nada de instintivo no
comportamento de um felino que
conduz seu proprietário rumo à
geladeira e fica miando diante
dela até que este lhe dê, digamos,
o pedaço requerido de carne.
Tampouco foi pré-registrado nos
cromossomos de um cachorro
que, se ele latir e se dirigir à porta
da casa, seu dono (com certo esforço) enfim compreenderá que o
bicho precisa visitar urgentemente a árvore da esquina. Que os
animais em questão não recorram à linguagem articulada para
nos transmitirem suas instruções
decorre antes da anatomia de sua
garganta e dos acasos da evolução. Mas que eles raciocinam, raciocinam.
É plausível, portanto, imaginar
que nós também o fizéssemos antes de acharmos ou desenvolvermos um meio para informarmos
os demais membros da espécie de
nossas idéias ou, o que é mais freqüente, de sua ausência. Sem dúvida, a maior parte da linguagem
que produzimos segue confinada
à nossa caixa craniana e se
desenrola sob a forma de monólogo interior. Quem sabe, a descoberta mesma da comunicabilidade desse monólogo não passe de
um acidente darwiniano feliz ou
infeliz e, seja como for, trata-se de
um processo em andamento que,
se não imperfeito, é decerto inacabado. Da multiplicidade dos
idiomas aos perpétuos mal-entendidos no âmbito de cada qual,
muito "ruído" aponta para a hipótese de que o entendimento seja
um acidente que resulta sobretudo de uma seqüência incessante e
insistente de tentativas e erros.
O estudioso Eric Havelock argumentou convincentemente que o
nascimento da prosa está ligado à
invenção prévia da escrita, em especial da escrita grega, a primeira
a diferenciar claramente entre
consoantes e vogais, permitindo a
compreensão de palavras não conhecidas de antemão. Mais até do
que a escrita, a maturidade da
linguagem seria decorrência ou se
encarnaria na prosa, pois esta já
não seria tanto a mera gravação
de uma manifestação oral num
tipo distinto de material (que é
como o autor qualifica as escritas
anteriores ao alfabeto helênico),
quanto uma maneira diferente e
nova de pensar, ou seja, consistiria em pensar não oralmente,
mas por escrito: raciocinar com
tinta no papel, papiro ou pergaminho.
A prosa, nesse sentido restrito,
equivaleria ao modo adulto de
caminhar. Daí sua natureza intrinsecamente prática. Os exemplos mais puros de prosa são exatamente os mais despidos de
qualquer aspecto estético e esses
se encontram nos manuais do
usuário de um automóvel, nos
contratos de locação de um apartamento e outros textos semelhantes. O que importa neles é
chegar de um ponto a outro sem
desvios nem imprecisões. Ser clara e inequívoca é a qualidade
mais amiúde atribuída à boa prosa.
Com a poesia, o que sucede é o
contrário. As virtudes prosaicas
são, potencialmente, defeitos poéticos e vice-versa. Se repetir sons é,
na prosa, um vício, quando se faz
poesia tal vício se transforma
num recurso não raro obrigatório
e que leva nomes como aliteração
ou rima. Onde a prosa se compraz
com contrastes claros e definições
exatas, a poesia prefere elaborar
nuances sutis. Principalmente,
ela implica se divertir no caminho.
Mas há um momento em que as
analogias cessam, deixam de ser
úteis. Nem sempre a prosa aspira
somente à comunicabilidade, e
uma ilusão corrente é a de entrever na poesia apenas seus elementos pré-adultos de espontaneidade, uma ilusão nutrida por dois
séculos de desconversa sobre a
inspiração. Existe um grau superior de maturidade lingüística rumo ao qual convergem tanto a
prosa como a poesia.
E o ponto de fuga onde se encontram, o da maturidade última, é igualmente aquele que, em
outro contexto, Elias Canetti batizou de "consciência das palavras". Essa consciência é, antes de
mais nada, a da lacuna, ou melhor, sua função principal reside
em não deixar que nos esqueçamos de tudo o que se perde quando se traduz o monólogo interior
em fala aparentemente comunicável.
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