São Paulo, sábado, 02 de junho de 2001

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RESENHA DA SEMANA

O desejo do autor

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Heinrich Heine (1797-1856) foi amigo e colaborador de Marx, admirado por Nietzsche, Thomas Mann e Brecht. Foi um precursor da ironia na passagem do romantismo para o realismo. Sua obra manifesta em grande parte o desencanto dos idealismos românticos confrontados com a racionalidade, mas ainda com um pé lá e outro cá (o poeta chegou a se engajar no movimento romântico na juventude).
Heine lança mão de uma forma ambígua, própria da ironia, que, se por um lado lhe permite atacar as ilusões (o amor romântico, por exemplo), ao mesmo tempo em que parece exaltá-las pela paródia, por outro ainda permite uma leitura inversa, crente e ingênua, como a dos nazistas que, embora execrassem o autor e suas posições mais inequívocas, podiam cantar seus versos alegremente como se fossem canções populares.
"Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski" (1831), apresentado como fragmento de um romance picaresco, deixa poucas dúvidas quanto à ironia do autor. A brincadeira, no caso, é explícita demais para que possa ser pervertida por uma pretensa ingenuidade romântica.
O velho Schnabelewopski lembra-se de seus anos de juventude e de sua saída de casa para descobrir o mundo. Trata-se de um tema caro aos românticos, mas ao qual Heine incorporou a sátira e um sarcasmo cuja inspiração foi buscar na literatura picaresca.
Já nas primeiras lembranças de Schnabelewopski, o que o leitor apreende da infância do narrador não é nenhum romantismo, mas uma irônica descrição da violência e da perversidade da vida pela incompatibilidade dos olhos inocentes de uma criança. E é como se Heine entregasse aí a chave de sua ironia paródica: ela vem da aparente inocência de dizer as coisas mais terríveis como se fossem ternas e as mais implacáveis como se fossem românticas. Ela é fruto de uma inocência artificiosa e cínica, de um jogo de inversões que provocam o riso.
Assim, os banqueiros podem ser "elogiados" como bandidos, e o egoísta descaradamente justificar as suas misérias como castigo pelo seu desejo incontrolável de fazer o mundo inteiro feliz. Mas são sobretudo as imagens da paixão romântica que mais sofrem pelo exagero da paródia que revela o grotesco de sua expressão.
"Qual era o significado daquele olhar de soslaio (...) cujo fulgor se derramou sobre minha alma semelhante a um longo raio de luz, que a lua verte sobre o mar noturno (...)? Em minha alma, que estava tão sombria quanto o mar, aquele raio de luz despertou todos os monstros que dormiam no abismo profundo, e os mais enlouquecidos tubarões e peixes-espada da paixão se alçaram de pronto e se agitaram, ao mesmo tempo em que se morderam as caudas de tanto desejo."
O que o cinismo dessa ironia revela não é uma verdade por trás do jogo das aparências, mas a sua relatividade, a permanente dependência das circunstâncias e dos pontos de vista. A ironia mostra que os significados estão aí para serem remanejados, não são jamais absolutos, mas peças que podem revelar outras verdades em novas combinações (entre opostos, por exemplo).
A opinião do autor passa a ser mediada pela afirmação irônica do seu oposto. Vem daí a ambiguidade, tipicamente moderna, que não permite mais distinguir o desejo do escritor ou tirar conclusões do que ele pensa ou sente com base exclusiva no que diz o narrador. Simplesmente porque o desejo está no próprio jogo. Tudo é sexualizado, mas nada pode ser levado a sério.
Não seria apenas pobre e equivocado, mas grotesco, concluir que Schnabelewopski, ao narrar como um velho gagá e tarado as suas façanhas amorosas de juventude, representasse o reputado desejo e um pretenso machismo do autor.
O que a ironia e o desencanto do realismo inauguram na literatura do século 19 é a possibilidade de uma compreensão mais rica, mediada e complexa do próprio ato de criação e, curiosamente, a possibilidade de uma literatura não apenas pós-romântica, mas não-realista. Pelo menos dentro dos parâmetros de um realismo empobrecido que, num retrocesso muito em voga atualmente, pretende reduzi-la à expressão da experiência do autor.

Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski
Aus den Memoiren des Herrn von Schnabelewopski
    Autor: Heinrich Heine
Tradutor: Marcelo Backes
Editora: Boitempo
Quanto: R$ 19 (102 págs.)



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