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RESENHA DA SEMANA
O desejo do autor
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Heinrich Heine (1797-1856) foi amigo e colaborador de Marx, admirado por
Nietzsche, Thomas Mann e
Brecht. Foi um precursor da ironia na passagem do romantismo para o realismo. Sua obra
manifesta em grande parte o desencanto dos idealismos românticos confrontados com a
racionalidade, mas ainda com
um pé lá e outro cá (o poeta chegou a se engajar no movimento
romântico na juventude).
Heine lança mão de uma forma ambígua, própria da ironia,
que, se por um lado lhe permite
atacar as ilusões (o amor romântico, por exemplo), ao mesmo tempo em que parece exaltá-las pela paródia, por outro ainda
permite uma leitura inversa,
crente e ingênua, como a dos nazistas que, embora execrassem o
autor e suas posições mais inequívocas, podiam cantar seus
versos alegremente como se fossem canções populares.
"Das Memórias do Senhor de
Schnabelewopski" (1831), apresentado como fragmento de um
romance picaresco, deixa poucas dúvidas quanto à ironia do
autor. A brincadeira, no caso, é
explícita demais para que possa
ser pervertida por uma pretensa
ingenuidade romântica.
O velho Schnabelewopski
lembra-se de seus anos de juventude e de sua saída de casa
para descobrir o mundo. Trata-se de um tema caro aos românticos, mas ao qual Heine incorporou a sátira e um sarcasmo cuja
inspiração foi buscar na literatura picaresca.
Já nas primeiras lembranças
de Schnabelewopski, o que o leitor apreende da infância do narrador não é nenhum romantismo, mas uma irônica descrição
da violência e da perversidade
da vida pela incompatibilidade
dos olhos inocentes de uma
criança. E é como se Heine entregasse aí a chave de sua ironia
paródica: ela vem da aparente
inocência de dizer as coisas mais
terríveis como se fossem ternas
e as mais implacáveis como se
fossem românticas. Ela é fruto
de uma inocência artificiosa e cínica, de um jogo de inversões
que provocam o riso.
Assim, os banqueiros podem
ser "elogiados" como bandidos,
e o egoísta descaradamente justificar as suas misérias como
castigo pelo seu desejo incontrolável de fazer o mundo inteiro feliz. Mas são sobretudo as
imagens da paixão romântica
que mais sofrem pelo exagero
da paródia que revela o grotesco
de sua expressão.
"Qual era o significado daquele olhar de soslaio (...) cujo fulgor se derramou sobre minha
alma semelhante a um longo
raio de luz, que a lua verte sobre
o mar noturno (...)? Em minha
alma, que estava tão sombria
quanto o mar, aquele raio de luz
despertou todos os monstros
que dormiam no abismo profundo, e os mais enlouquecidos
tubarões e peixes-espada da paixão se alçaram de pronto e se
agitaram, ao mesmo tempo em
que se morderam as caudas de
tanto desejo."
O que o cinismo dessa ironia
revela não é uma verdade por
trás do jogo das aparências, mas
a sua relatividade, a permanente
dependência das circunstâncias
e dos pontos de vista. A ironia
mostra que os significados estão
aí para serem remanejados, não
são jamais absolutos, mas peças
que podem revelar outras verdades em novas combinações
(entre opostos, por exemplo).
A opinião do autor passa a ser
mediada pela afirmação irônica
do seu oposto. Vem daí a ambiguidade, tipicamente moderna,
que não permite mais distinguir
o desejo do escritor ou tirar conclusões do que ele pensa ou sente com base exclusiva no que diz
o narrador. Simplesmente porque o desejo está no próprio jogo. Tudo é sexualizado, mas nada pode ser levado a sério.
Não seria apenas pobre e equivocado, mas grotesco, concluir
que Schnabelewopski, ao narrar
como um velho gagá e tarado as
suas façanhas amorosas de juventude, representasse o reputado desejo e um pretenso machismo do autor.
O que a ironia e o desencanto
do realismo inauguram na literatura do século 19 é a possibilidade de uma compreensão mais
rica, mediada e complexa do
próprio ato de criação e, curiosamente, a possibilidade de uma
literatura não apenas pós-romântica, mas não-realista. Pelo
menos dentro dos parâmetros
de um realismo empobrecido
que, num retrocesso muito em
voga atualmente, pretende reduzi-la à expressão da experiência do autor.
Das Memórias do Senhor de
Schnabelewopski
Aus den Memoiren des Herrn von
Schnabelewopski
Autor: Heinrich Heine
Tradutor: Marcelo Backes
Editora: Boitempo
Quanto: R$ 19 (102 págs.)
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