São Paulo, sexta-feira, 02 de julho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Teruz e Portinari

Dois nomes necessariamente associados na arte brasileira, em vida e em obra. Cumpriram ambos os mesmos roteiros iniciais, alunos da mesma Escola de Belas-Artes, os mesmos mestres, as mesmas experiências, incertezas e perplexidades. Filhos de imigrantes os dois: Portinari de italianos, Teruz de ascendentes libaneses, o pai nascido mais ou menos por acaso no Egito. Ambos romperam ao mesmo tempo com as regras que lhes eram ensinadas, ruptura sem o espalhafato dos paulistas de 1922, que fizeram muito barulho e logo se medalharam como aqueles rótulos dos vinhos do porto premiados em exposições.
Teruz como Portinari buscaram caminhos e encontraram soluções próprias, em surdina trabalharam, sabendo o que perseguiam. Ambos tiveram a mesma formação acadêmica, o mesmo aprendizado técnico, desdenhando a improvisação do diletante.
Teruz foi anterior a Portinari na fase dita marrom, aquela cor-de-terra que Portinari também usou e nela também se tornaria mestre. Mais inquieto, pequenino, frágil, mancando de uma perna, mais politizado, Portinari buscou e encontrou outros caminhos, pagou tributo aos modismos todos, foi picassiano, legeriano, braquiano -mas foi Portinari sempre. Teruz era outro tipo, homem de boa aparência, exuberante, olhos de beduíno que olhavam as mulheres fundamente e num desses lances reparou que as pernas da sua primeira neta, Cláudia, eram gorduchas e roliças -e pode-se dizer que foi das pernas de uma única menina que Teruz criou todas as suas meninas, mescla de anjos, não daqueles anjos espiritualizados da Umbria que inspiraram alguns renascentistas, mas anjos barrocos inspirados no dia-a-dia da vida urbana, das moças que subiam os morros ou de lá desciam, carregando latas d'água, brincando na rede, deitadas em cavalos, brincando de gangorra, dançando frevo.
Portinari derivou para a denúncia social. O vulcão interior que era Teruz produziu uma das obras mais coerentes e límpidas da nossa pintura. E a lavra rebelde que Portinari espalhou, em quadros e murais, numa obra vasta e complexa, escondia o intelectual internamente resignado e externamente insatisfeito.
Manso, meio cândido, Portinari rompeu com o passado da arte e às vezes com o seu próprio passado, buscando sempre novos caminhos. Com Teruz acontecia o inverso: como acentuaria o crítico Roberto Pontual, o fato que define a carreira artística do pintor das favelas e das meninas jogando peteca é que as duas vertentes de sua pintura sempre se situaram em "nível intermediário entre o antigo e o novo, a norma e a ruptura".
Teruz possuía uma obra mais acessível à nova classe que emergia do segundo pós-guerra. Uma burguesia que frequentava o café-society, já desvinculada da elite baseada no café ou na produção rural. Até então, substituindo o emprego público que escorava economicamente os nossos grandes pintores nacionais (Visconti, Amoedo etc...) e substituindo o mecenato do próprio Estado que, através do Ministério da Educação e Cultura, distribuía verbas, tarefas, prêmios e viagens, as novas classes que subiam na escala social descobriam na pintura uma forma sofisticada de investimento.
Foi nesse contexto, a partir de 1945, que Teruz começou a vender cada vez mais. Seus quadros não eram acadêmicos -a nova classe, como todos os novos-ricos, nutrem patético pavor pelas formas aparentemente superadas. As obras de Teruz não traziam as denúncias de Portinari, nem a lascívia de Di Cavalcanti ou a ingênua concepção de mundo de Djanira. A extraordinária luz que seus quadros contêm, a pastosa combinação de cores (o vermelho, o amarelo, o azul) que vestem as suas crianças, a sensualidade que não provoca nem invoca, antes convoca o olhar. Outro qualquer teria se ressentido das críticas em relação à sua obra. Mas Teruz estava acima, em outro nível humano e artístico. Sua obra era consumida pelos compradores, e os entendidos em arte, como Pietro Maria Bardi, que diria, em 1968, numa época em que somente Portinari era deus e todos os demais vassalos: "Cândido Portinari lhe deve algumas sugestões na sua fase mais autêntica, antes de passar para a ilustração aguda dos problemas sociais".
Enquanto se admira a versatilidade de Portinari, que pulou de galho em galho, seguindo (como seu grande modelo Picasso) todos os caminhos que se abriam, Teruz se bastou naquilo que Antonio Bento chamou de "unidade artística excepcional".
Se determinada opção obriga o artista a comer velas, como Modigliani, ou leva Van Gogh ao suicídio -azar dos outros: o criador criou e isso lhe basta. Na outra ponta da corda, há os Bachs que ganharam dinheiro e foram esnobados pelos críticos que o acusavam de mercenário e bajulador das cortes. O mesmo se poderá dizer de Goya, bufão da corte, que pintava folguedos de cortesão, pintor de corte, mas em sua Quinta del Sordo se entregava aos sonhos da razão que produzem monstros.
Seus quadros, qualquer deles, impressionam ao mesmo tempo o burguês que pagou US$ 17 mil por um de seus cavalos (leilão de Ernani em maio de 1982), como o classe média em ascensão que se encanta com as cores vivas, a luminosidade mágica de suas favelas e meninas de perninhas grossas.


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