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CARLOS HEITOR CONY
Teruz e Portinari
Dois nomes necessariamente
associados na arte brasileira, em vida e em obra. Cumpriram ambos os mesmos roteiros
iniciais, alunos da mesma Escola
de Belas-Artes, os mesmos mestres, as mesmas experiências, incertezas e perplexidades. Filhos de
imigrantes os dois: Portinari de
italianos, Teruz de ascendentes libaneses, o pai nascido mais ou
menos por acaso no Egito. Ambos
romperam ao mesmo tempo com
as regras que lhes eram ensinadas, ruptura sem o espalhafato
dos paulistas de 1922, que fizeram
muito barulho e logo se medalharam como aqueles rótulos dos vinhos do porto premiados em exposições.
Teruz como Portinari buscaram caminhos e encontraram soluções próprias, em surdina trabalharam, sabendo o que perseguiam. Ambos tiveram a mesma
formação acadêmica, o mesmo
aprendizado técnico, desdenhando a improvisação do diletante.
Teruz foi anterior a Portinari
na fase dita marrom, aquela cor-de-terra que Portinari também
usou e nela também se tornaria
mestre. Mais inquieto, pequenino, frágil, mancando de uma perna, mais politizado, Portinari
buscou e encontrou outros caminhos, pagou tributo aos modismos todos, foi picassiano, legeriano, braquiano -mas foi Portinari sempre. Teruz era outro tipo,
homem de boa aparência, exuberante, olhos de beduíno que olhavam as mulheres fundamente e
num desses lances reparou que as
pernas da sua primeira neta,
Cláudia, eram gorduchas e roliças -e pode-se dizer que foi das
pernas de uma única menina que
Teruz criou todas as suas meninas, mescla de anjos, não daqueles anjos espiritualizados da Umbria que inspiraram alguns renascentistas, mas anjos barrocos
inspirados no dia-a-dia da vida
urbana, das moças que subiam os
morros ou de lá desciam, carregando latas d'água, brincando na
rede, deitadas em cavalos, brincando de gangorra, dançando
frevo.
Portinari derivou para a denúncia social. O vulcão interior
que era Teruz produziu uma das
obras mais coerentes e límpidas
da nossa pintura. E a lavra rebelde que Portinari espalhou, em
quadros e murais, numa obra
vasta e complexa, escondia o intelectual internamente resignado e
externamente insatisfeito.
Manso, meio cândido, Portinari
rompeu com o passado da arte e
às vezes com o seu próprio passado, buscando sempre novos caminhos. Com Teruz acontecia o inverso: como acentuaria o crítico
Roberto Pontual, o fato que define a carreira artística do pintor
das favelas e das meninas jogando peteca é que as duas vertentes
de sua pintura sempre se situaram em "nível intermediário entre o antigo e o novo, a norma e a
ruptura".
Teruz possuía uma obra mais
acessível à nova classe que emergia do segundo pós-guerra. Uma
burguesia que frequentava o café-society, já desvinculada da elite
baseada no café ou na produção
rural. Até então, substituindo o
emprego público que escorava
economicamente os nossos grandes pintores nacionais (Visconti,
Amoedo etc...) e substituindo o
mecenato do próprio Estado que,
através do Ministério da Educação e Cultura, distribuía verbas,
tarefas, prêmios e viagens, as novas classes que subiam na escala
social descobriam na pintura
uma forma sofisticada de investimento.
Foi nesse contexto, a partir de
1945, que Teruz começou a vender cada vez mais. Seus quadros
não eram acadêmicos -a nova
classe, como todos os novos-ricos,
nutrem patético pavor pelas formas aparentemente superadas.
As obras de Teruz não traziam as
denúncias de Portinari, nem a
lascívia de Di Cavalcanti ou a ingênua concepção de mundo de
Djanira. A extraordinária luz que
seus quadros contêm, a pastosa
combinação de cores (o vermelho,
o amarelo, o azul) que vestem as
suas crianças, a sensualidade que
não provoca nem invoca, antes
convoca o olhar. Outro qualquer
teria se ressentido das críticas em
relação à sua obra. Mas Teruz estava acima, em outro nível humano e artístico. Sua obra era
consumida pelos compradores, e
os entendidos em arte, como Pietro Maria Bardi, que diria, em
1968, numa época em que somente Portinari era deus e todos os
demais vassalos: "Cândido Portinari lhe deve algumas sugestões
na sua fase mais autêntica, antes
de passar para a ilustração aguda
dos problemas sociais".
Enquanto se admira a versatilidade de Portinari, que pulou de
galho em galho, seguindo (como
seu grande modelo Picasso) todos
os caminhos que se abriam, Teruz
se bastou naquilo que Antonio
Bento chamou de "unidade artística excepcional".
Se determinada opção obriga o
artista a comer velas, como Modigliani, ou leva Van Gogh ao suicídio -azar dos outros: o criador
criou e isso lhe basta. Na outra
ponta da corda, há os Bachs que
ganharam dinheiro e foram esnobados pelos críticos que o acusavam de mercenário e bajulador
das cortes. O mesmo se poderá dizer de Goya, bufão da corte, que
pintava folguedos de cortesão,
pintor de corte, mas em sua Quinta del Sordo se entregava aos sonhos da razão que produzem
monstros.
Seus quadros, qualquer deles,
impressionam ao mesmo tempo o
burguês que pagou US$ 17 mil por
um de seus cavalos (leilão de Ernani em maio de 1982), como o
classe média em ascensão que se
encanta com as cores vivas, a luminosidade mágica de suas favelas e meninas de perninhas grossas.
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