São Paulo, sábado, 02 de julho de 2011 |
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CRÍTICA ROMANCE História de Margaret Atwood apela a dilúvio de sentimentalismo ambiental MARCELO LEITE EDITOR DE OPINIÃO O que seria da mitologia ecossentimental, hoje tão em voga, se a Bíblia houvesse ambientado a fábula de Adão e Eva na Estrebaria do Éden, em lugar do Jardim do Éden? Raciocinando por hipótese, a canadense Margaret Atwood não teria escrito um romance como "O Ano do Dilúvio", ou comporia um livro muito diferente. Seus Adãos e Evas teriam de reencontrar o divino em matérias mais insalubres que as folhas, sementes e raízes manipuladas pelos Adãos e Evas da seita Jardineiros de Deus que protagonizam o enredo admonitório. Vaqueiros de Deus também se veriam obrigados a reconstruir e repovoar o planeta devastado pelo dilúvio seco, mas poderiam fazê-lo sem a ambiguidade implícita na figura do Éden. Um jardim é algo que se cultiva. Em inglês, a língua de Margaret Atwood, "garden" pode também designar uma horta, lugar mais associado com o trabalho duro do que o jardim de flores, embora ambos exijam o manuseio da enxada. Ocorre que um jardim pode ser também metáfora para a natureza primordial, como as florestas em desaparição, com as quais se associa a nostalgia do paraíso perdido. Nessa figura, o ambiente perde a condição de meio que o homem constrói e reconstrói para aparecer como algo original, belo e bom, que ele só pode desnaturar ou conspurcar. Dado que Atwood não é a autora dessa confusão fundamental entre natureza e Criação, releve-se a tendência de "O Ano do Dilúvio" a descambar para o sentimentalismo. SÃO CHICO MENDES Sem essa lente rósea, dogmas, hinos e homilia dos jardineiros soariam quase humorísticos -para não falar do calendário coalhado de santos improváveis, como são Chico Mendes. No mais, é o romance de denúncia ambientalista tradicional: catástrofe misteriosa dizima a maior parte da humanidade numa terra escorchada por corporações, como a CorpseCorps. Raros sobreviventes, jardineiros no papel de mocinhos, perambulam pelos escombros da civilização, topam tudo para sobreviver (inclusive ingerir proteína animal) e acabam por reencontrar-se. Enredo não muito diferente se encontra em "A Estrada", de Cormac McCarthy, mas como é imensa a distância entre um e outro. Em sua obra-prima, McCarthy não explica nada sobre as cinzas que cobrem tudo e concentra o foco poderoso da narrativa sobre a peregrinação do pai moribundo e da criança febril para o litoral ao sul. Sabe-se, pelos dois desfechos, que a humanidade não se extinguirá. No segundo caso, contudo, não sobra nada da esperança de retorno ao ponto reconfortante de origem -e daí pode nascer uma literatura menos militante e bem mais grandiosa. O ANO DO DILÚVIO AUTORA Margaret Atwood EDITORA Rocco TRADUÇÃO Márcia Frazão QUANTO R$ 59 (572 págs.) AVALIAÇÃO regular Texto Anterior: Crítica/Ensaio: Autoridade moral é trunfo de George Orwell Próximo Texto: Livros: Ficção Índice | Comunicar Erros |
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