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NINA HORTA
O mundo antes das grades
O que perderam meus netos por não conhecerem os vizinhos? Dona Judith, que fazia gefilte fish...
RESOLVI ANDAR um pouco a pé,
ir até o supermercado. No
meio do caminho, não tinha
uma pedra, uma pedra, mas senti
uma estranheza que custei a identificar. Quando eu passava em frente
aos portões, soava um alarme e luzes
se acendiam. Fiquei brincando de
gato e rato com as portas tão sensíveis, mas foi me dando uma raiva
burra. Acreditam que me senti
excluída e empurrada para fora
daqueles prédios?
Não deveria ter sido surpresa. É
que sou muito distraída. Quando
vou a uma festa feita por nós do bufê,
passo por problemas incríveis. Basta
o porteiro enxergar uma velha de cabelos brancos que se diz cozinheira,
na chuva, sobem-lhe à cabeça suspeitas terríveis de assalto e mulher-bomba. Escondido atrás de um vidro blindado fumê, pede a identidade que devo inserir numa fenda, de
onde cairá na caixinha dele.
Começo a vislumbrar, atrás do escuro, um sujeito atarracado, mordendo a ponta da caneta, olhos entrefechados. Escreve e lê com dificuldade. Acho que tão avançada técnica contra ladrões mereceria um
Nero Wolfe, um Perry Mason, um
Sherlock. Inúmeras vezes já cansei
ao ser recolocada numa segunda
jaula, e daí desisto. Brado: "Não entro, mas não tem festa". Costuma ser
um abre-te sésamo. O engraçado é
que, todas as vezes que consigo chegar, adivinhem quem já está lá me
esperando há 40 minutos? O senhor
Zé, nosso motorista de longa data,
que tem a maior cara de mexicano,
bigodes revirados e olhar furtivo.
Ele, sim, sabe das coisas.
Claro que entendo que a segurança é necessária. Mas o problema que
tenho para aceitar as ruas fechadas...
As ruas do meu bairro, as vilas do
meu bairro. Onde foi parar o meu
bairro? Que droga. Fico pensando
assim. Se tenho que morrer de
pneumonia, catapora, sarampo,
dengue, morro de ladrão, mas não
abdico da rua. O que perderam meus
netos por não conhecerem seus vizinhos? Por terem perdido dona Judith, que fazia gefilte fish, dona Hermínia, que recheava alcachofras
com a farinha de pão e as fritava em
azeite? Dona Conceição, que era especialista em doce de tomate? Sem
contar dona Seraphita, com suas
inefáveis balas de ovos. Vocês não
imaginam o que eram as balas de
ovos portuguesas da dona Seraphita,
que não tinham nada a ver com estas
que comemos hoje, com cascas duras como vidros. E com a irmã dela
aprendi a comer sanduíche de chocolate e de uvas. Sem contar Natália,
a italianinha, esta sim, que me deu o
maior prazer de todos, ensinando-me furtivamente como se fazia um
sanduíche de alho cortado fininho,
um pingo de sal e bastante azeite. O
meu bairro era a ONU, era o que nos
transformava em cidadãos do mundo, era o que nos ensinava a enfrentar a vida de patins e bicicleta, era o
mundo lá fora que trazíamos para
exame dos pais. A rua educa, todos
misturados na mesma tigela. Era
preto e era branco, amarelo, pobre e
rico, vendedor e comprador, sem
zumbidos de grades excludentes.
O que mais me irrita é achar que
por trás disto tem um pouco de sentimento de status. Se os muito ricos
se fecham atrás de grades, nós também devemos nos fechar, no que nos
enganamos. Naquelas casas onde há
seqüestráveis de verdade não se percebe a segurança. Invisível.
Atrás do bufê há uma vila. As casas
são simpáticas, geminadas, uma boa
sala, cozinha e quarto. Pois não é que
puseram um portão de um lado e
outro de outro na vilinha? Não podemos mais dar uma volta no quarteirão sem um guarda que abra os
portões desconfiados.
Bairros são o mundo em pequena
escala, são a primeira inspiração de
nossas vidas. Olhem só o nome dos
tangos. "Mi Viejo Barrio", "Los Cien
Barrios Porteños, "Esquinas Porteñas", "El Barrio", "De mi Barrio",
"Cuando el Barrio se Duerme",
"Compadrito de mi Barrio"... Sem
falar em Jaçanã e Copacabana.
Derrubemos los portoñes!
ninahorta@uol.com.br
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