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CONTARDO CALLIGARIS
Ostentação
Não conseguirei responder a
todos os leitores que me escreveram comentando a coluna
da semana passada. Peço desculpas e agradeço pelos dissensos, pelas observações e pelos parabéns.
Várias mensagens levantam
uma mesma questão. Num país
em que tantos batalham com as
necessidades básicas, Marta Suplicy organizou uma grande festa
e escolheu um vestido de noiva
que custou R$ 6.000: não é um tapa na cara do povo?
Alguns acrescentam: conhecemos famílias de pequena classe
média que, na hora de uma filha
casar, gastam um dinheiro que
dotaria o novo casal de um apartamento próprio. Mas, mesmo
que, em proporção, Marta e Luis
Favre tenham gastado razoavelmente, será que eles não têm um
dever de pudor e austeridade?
Só posso fornecer elementos para pensar: que cada um responda.
Vamos com ordem: a riqueza
moderna é sempre, de alguma
forma, ostentada. A regra é a seguinte: as diferenças sociais não
dependem mais do berço em que
nascemos. Elas são "só" econômicas. O "só" significa que não é impossível atravessá-las. Imaginemos que, para jantar no Fasano,
eu precise gastar meu salário
mensal. Em compensação, garantem que não serei barrado na
porta nem pelo meu nome nem
pela cor da minha pele. Resta-me
(dizem) dar duro, ter sorte e
"crescer".
Pergunta: uma vez que eu dispusesse do dinheiro, por que não
fritaria frugalmente dois ovos em
casa? E, se quisesse um risoto com
trufas, por que não chegaria ao
restaurante pela porta dos fundos, de preferência sem fotógrafo?
Acontece que a organização social moderna não consiste apenas
em substituir a nobreza do sangue pelo volume da carteira. Nosso status não é uma qualidade intrínseca nem de nosso ser nem de
nossas posses: ele depende do
olhar dos outros.
Portanto guardar riqueza no silêncio de um cofre não basta
mais: integrar uma classe social
implica exibir o padrão de consumo esperado. Uma extravagância
narcisista toma conta de nossa
subjetividade por ser necessária
ao nosso funcionamento social: é
preciso alimentar um crescimento econômico infinito, fomentando a inveja que dá fôlego à corrida de todos. Sem extravagância,
acaba a sociedade de consumo.
Vontade de dizer: e daí? Que
acabe. Infelizmente, a sociedade
de consumo é preferível a um regime tradicional de castas, que
manteria todo o mundo cravado
no lugar em que viu a luz. Em suma, console-se: folheando "Caras", estaríamos no melhor dos
mundos possíveis.
Há dois argumentos contra o
bom funcionamento desse sistema no Brasil.
O primeiro constata que as diferenças sociais são grandes demais. Para quem está na miséria,
a riqueza ostentada não é uma
promessa. Ela funciona como a
pompa que, na antiguidade, era a
marca distintiva das castas superiores. Em vez de olhar para trono
e cetro para se lembrar de quem é
o rei, olhe para meu carro e minhas quatro suítes, saiba quem
manda aqui e não espere chegar
perto. A diferença excessiva produz exclusão: os ricos são tão distantes de mim que não reconheço,
entre nós, comunidade nenhuma.
Sou de outra tribo; os privilegiados são uma força estrangeira de
ocupação. Sobra aos vira-latas
procurar restos no lixo ou ir à luta; não na vida, mas com um berro na mão.
O segundo argumento completa
o primeiro. Apesar da mobilidade
social efetiva, a sociedade brasileira sofre de arcaísmo: pouco
mais de um século de modernidade não foi suficiente para eliminar o espírito da escravatura. De
novo: olhe para o luxo dos donos e
aprenda que você é de outra raça.
Os tempos mudam. Pobre e negro já pode usar o elevador social.
Um dia, milhões de brasileiros
sairão da miséria que os exclui.
Aos poucos, o sentimento de uma
comunidade de destino prevalecerá sobre os restos da escravatura. Pode ser. Mas, por enquanto,
vivemos uma época de transição.
Somos modernos e consumimos
ostentando, mas, pela ostentação,
mantemos diferenças sociais arcaicas.
Nesse ínterim, qual é o "bom
uso" dos prazeres? Qual é a ostentação que não produz exclusão?
A resposta não está nos números. Se R$ 6.000 para um vestido
de noiva é demais, quanto seria o
certo: R$ 2.000? Vá saber.
Há dois critérios frágeis.
O primeiro é a intenção: quem
consome está aproveitando a vida e ostentando por acidente
(aceitável) ou está gozando da ostentação que impõe aos outros o
espetáculo de seu poder (inaceitável)?
O segundo é o bom gosto: numa
sociedade organizada pelas aparências, critérios estéticos podem
regrar as escolhas morais.
Na Inglaterra do começo do século 19 (também época de transição), surgiu o movimento dândi.
Os dândis são lembrados como
desvairados obcecados por sua
aparência, mas tiveram uma função modernizadora crucial: substituíram o privilégio do sangue
pelo privilégio da elegância (acessível a qualquer um que a ela se
dedicasse). Se um judeu, como
Disraeli, pôde se tornar ministro
da rainha Vitória, foi também
por ele ser um dândi.
Ora, Beau Brummel, supremo
árbitro do dandismo, perdia horas na frente do espelho, cuidando de sua aparência. Mas, antes
de se aventurar pelas ruas de Londres, submetia-se a um teste. Ficava um tempo na esquina. Se
ninguém o notasse, se ele passasse
despercebido, considerava que estava pronto e bem vestido.
ccalligari@uol.com.br
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