São Paulo, quinta-feira, 02 de outubro de 2008

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NINA HORTA

A identidade e o sujo


Quando você cozinha para a família, usa luvas e gruda o bigode com esparadrapo? Deveria cozinhar de capacete

NO BUFÊ tiramos longas mesas de madeira inteiriças, porque a lei obriga a ter móveis de inox. Já andei lendo sobre o assunto, que é complexo e vasto.
Cientistas e pesquisadores mostram que a madeira é mais eficiente no controle da "sujeira" do que outros materiais. Mas há muitas variáveis, e ainda não achei um estudo que me provasse tudo isso com certeza absoluta.
Mas fico pensando. Na nossa infância, alguém tinha mãe que não chupava a chupeta quando caía no chão e punha na sua boca outra vez? Quem não engatinhou no chão onde o cachorro babou? Alguém morreu? Quando terá surgido o conceito de sujo? Tenho um livrinho aqui, "Purity and Danger", de Mary Douglas, que me esclarece um pouco. Só no século 19 é que foi descoberta a transmissão de doenças por bactérias, o que transformou tanto nossas vidas que só podemos pensar em sujeira em relação à patogenia.
Se abstrairmos a patogenia, ficamos com um conceito de "sujo" muito interessante. Sujo é o que está fora do lugar. Se você compra um sapato novo e o coloca no meio da mesa na hora do jantar, vai ser interpelada: "Tira este sapato da mesa, por favor". Meio cálice de vinho está longe de ser sujo, mas se ele cai na sua camisa, ela passa a sujíssima. O nosso comportamento versus poluição é condenar qualquer coisa ou objeto que possa confundir ou contradizer nossas classificações padronizadas.
Só perguntas. Por que uma cereja que cai num chão aparentemente limpo tem que ser jogada fora e se cai numa mesa aparentemente limpa é comida com gosto? Por que os chefs franceses ficam na porta da cozinha e quando o prato do cliente passa ele aperta o bife com o dedo para ver se está no ponto? Por que nós temos de usar luvas para fazer os mais visguentos doces, onde se fica parecendo o macaco que grudou no piche? E por que aquelas redinhas horrendas na cabeça, cheias de furinhos, uma coisa tão feia que não há jeito de sair da cabeça feia daquele cozinheiro uma comida boa? Levanto a bandeira dos turbantes coloridos, de chita, como os amarrados no Pelourinho, para as mulheres brasileiras, com muito charme e graça.
Quando você cozinha para a família, supostamente o grupo que mais ama e ao qual não quer que nada de ruim aconteça, usa luvas, redinha, uniforme e gruda o bigode com um esparadrapo? Ora, deveria cozinhar até de capacete. Tudo que sai do nosso corpo é perigoso e nojento. Cuspe, sangue, leite, urina, fezes, lágrimas. E se você usa as unhas para cozinhar, toca os ingredientes com a mão, sua no calor dos fornos, nada disso pode aparecer na comida. O restaurante será punido e terá que fechar as portas se aparecer uma unha cortada, um cabelinho bem limpinho na sopa. É porque está fora do lugar, minha gente, pensem bem. As índias fazem cauim mastigando e cuspindo, os indianos tiram da boca sementes de melão para torrar.
Pensem num restaurante. Tudo que sobra do ingrediente é sujeira e tem que ser retirada da mesa imediatamente. Tudo que ainda retém alguma identidade é sujo. Folhas externas da alface, a casca da laranja, a palhinha do alho, as folhas da beterraba. Vão para o lixo e ainda são nojentas. Quem quer enfiar a mão no lixo para encontrar a faca perdida? Depois que apodrecem, que viram composto, que perdem a identidade, não temos mais nojo. É gostoso deixar escapar pelos dedos um composto bem sequinho que vai ajudar a começar todo um ciclo de vida.
Imaginem uma cozinha quase pronta, mas sem vasilhas. Chega o fornecedor com um bidê novinho, rutilante de limpo, e põe no chão da cozinha. Alguém tem a brilhante idéia de bater um bolo nele. Será abatido a tiros. Por quê? Por quê? Gagá ou dadá?

ninahorta@uol.com.br



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