São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2010

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CRÍTICA DIÁRIO

Kerouac narra limbo pessoal no isolamento

"Anjos da Desolação", escrito em duas etapas, em 1956 e 1961, é último de "fase estradeira" publicado no Brasil

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dentre algumas dificuldades ligadas à leitura, a que mais incomoda este resenhista é revisitar autores lidos na adolescência. Como Jack Kerouac, por exemplo.
"Anjos da Desolação", romance escrito em dois tempos (a primeira parte em 1956 e a segunda em 1961) é o último representante da fase estradeira do autor a ser publicado no Brasil.
Outros do mesmo período (cito aqueles saídos nos anos 1980: "On The Road", "Os Subterrâneos", "Big Sur", "Viajante Solitário") foram consumidos febrilmente com a idade do leitor ideal de Kerouac: 16 anos.
É tão triste quanto óbvio constatar que o tempo passa, e o aspecto mais perceptível dessa melancolia típica da experiência é descobrir que aquela identificação que fez arder a imaginação nunca mais se repetirá.
Por isto prosseguimos com a leitura: pela ânsia de novamente ser arrebatado.
A sensação tem a ver com "Anjos da Desolação", que explora as últimas viagens feitas por Kerouac antes de se consagrar o "rei dos beats" ("On The Road" se tornaria best-seller imediato ao ser publicado em 1957) e se isolar na casa da mãe em Lowell, Massachusetts. Amargurado, morreu em 1969, aos 47 anos.
Em 1956, entretanto, Jack se candidatara a um trabalho de vigia de incêndios no Estado de Washington, na fronteira com o Canadá. No verão do mesmo ano, seguiu para a montanha Desolation Peak, 2 mil metros acima do mar, e lá ficou completamente só pelos 63 dias seguintes.
A experiência de isolamento se sucedeu à descoberta do budismo e às intensas aulas e discussões acerca do assunto com os poetas Gary Snyder e Philip Whalen (narradas em "Os Vagabundos Iluminados").

A PIOR COMPANHIA
Na primeira parte do livro, Kerouac tem diante de si a paisagem deslumbrante, mas também a "liberdade eterna de todas as criaturas vivas" dos prognósticos budistas.
Numa espécie de limbo pessoal, depara-se consigo mesmo, sua pior companhia, e sonha em voltar à farra em San Francisco. "Anti-herói dostoievskiano", no dizer de Cláudio Willer, pioneiro em sua difusão no Brasil, Kerouac "procurou a santidade no submundo".
Essa busca torna a segunda parte do romance, "Passando", menos reflexiva e com fatura mais direta.
Alguns trechos dessas deambulações por Tânger, Europa e México ressuscitaram o garoto de 16 anos que sublinhou o seguinte num exemplar amarrotado de "Viajante Solitário": "Me deem um arco e uma flecha e eu irei, estou pronto, passagem aérea por favor; um passinho à frente, a lista está vazia; os cavaleiros se tornam mais ousados à medida que envelhecem; os jovens cavaleiros sonham."


JOCA REINERS TERRON é autor de "Do Fundo do Poço se Vê a Lua" (Cia. das Letras)

ANJOS DA DESOLAÇÃO

AUTOR Jack Kerouac
TRADUÇÃO Guilherme da Silva Braga
EDITORA L&PM
QUANTO R$ 68 (360 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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