São Paulo, sexta, 2 de outubro de 1998

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GASTRONOMIA
Saudades da comida da mãe...

NINA HORTA
Colunista da Folha

Ai, de vez em quando me dá uma saudade de comida sem responsabilidade, comida na mesa, feita por mãe ou orientada por mãe, comida que ninguém botava pensamento em cima, só comia e achava boa ou ruim. Você se sentava de mãos lavadas e esperava.
É claro que havia bastidores, uns certos exercícios preliminares, como ir à feira da Oscar Freire, um pulinho ao Santa Luzia, mas tudo muito quieto e simples, sem comentários sobre rúculas orgânicas ou "frisées".
Era o que era. E, na maioria das vezes, era alface.
Cadernos de receitas, nenhum. Livros, o Rosamaria em três tomos, pouco consultado. Elegância ática da comida mineira, diria Pedro Nava.
Como a mãe era muito magra e equilibrada para comer e não morria de amores por carnes e peixes, o forte eram os legumes ao dente, os purês de batata, as mandioquinhas, carás, inhames, mexidinhos, arrozes de tico-tico.
O arroz pedia-se solto e cheiroso, o feijão grosso, uma salada e dois legumes, um bolinho. Nada disso interessava muito à criança de cinco anos.
Esperava a "pièce de resistance". Minto. O feijão puro, em prato fundo, com pão, era o que havia de melhor, mas com certeza faltava-lhe o bom tom.
E o prato principal? Repetitivo, repetitivo e, por se repetir, ia se aperfeiçoando e afinando os paladares.
No dia da feira eram pescadinhas fritas acompanhadas por batatas na manteiga com muita salsa e torrada com espinafre e ovo. Na hora, um limão espremido sobre o filé.
O frango assado tinha gosto e era o astro do almoço de domingo, porque de frango a mãe gostava e gosta até hoje, tendo sido o terror das galinhas por quase um século.
Acompanhavam a ave empadinhas de palmito, ou a precediam empadas de camarão.
Eram perfeitas as empadinhas, e nenhuma empregada jamais aprendeu o segredo.
Podiam forrar as fôrmas, e olho vivo para captar o segredo que variava. Saídas do forno, quentes, brilhavam marrons onde haviam sido pinceladas com gema.
Sua característica era o recheio úmido e farto, nunca seco. Acho que o x da questão era enchê-las com o recheio quase líquido que se adensava no forno.
Esse domingo que se repetia em frangos era esperado ao sol, nas calçadas de amarelinha, ou sobre patins e bicicleta ao mesmo tempo, num mundo tão seguro e tão feliz que até doía.
Nos dias da semana o almoço sem o pai era rápido para evitar atraso na escola. Havia as estrelas gastronômicas que brilhavam e que a memória não consegue mais imitar.
Bolinho de arroz frito, de colher, com muita salsa. O arroz era mal moído, oferecendo ainda a resistência de alguns grãos, ao mesmo tempo crocante e marrom por fora e liquefeito por dentro.
A costeleta de porco jamais se repetiu fora daquela casa. Era fina, esturricada, não tinha gosto ruim de porco, frita em pouca gordura, mas guardando dentro uma umidade essencial.
Vinha acompanhada por um tutu molengo, couve muito fina e podia ser comida com a mão para alcançar os melhores pedaços.
O frango ensopado não tinha rival e nunca terá. Verdade das puras. Todo o segredo impossível estava na hora de refogá-lo.
Sabia-se se era hora de começar a juntar água pelo som do frigir, não pelo aspecto ou tempo. Chizzzz.
E havia massa feita em casa e dependurada no varal, canja, muitas sopas e feijoada quase sem gordura, aliás, tudo magro. A mãe da casa jamais admitiu excessos de azeite, óleo ou manteiga.
Fazia uma exceção para o bacalhau, que era assado no azeite, mas cujo óleo só deixava brilho e sabor. Para agradar o marido especializou-se em camarões com chuchu, que fazia na perfeição, sem provar.
De vez em quando um camarão ou uma coxinha empanada. As carnes se transformavam em croquetes, picadinhos. Raríssimo um bife sangrento. Rosbife, sim. Fazia rosbife cor-de-rosa com... Adivinhem: farofa... e era ótimo.
Não se comiam muitos doces , bolos e biscoitos, como na casa das avós. Frutas, gelatinas, compotas de pêssegos e figos frescos, pudins.
Engraçado, a dona da casa, a mais criativa das mulheres até hoje, mantinha uma linha de demarcação na cozinha.
Não exagerava em nada, não existia dendê nem curry, nada a não ser simplicidades mineiras e uns rasgos de Rosamaria. É que não queria, mesmo. Trivial era aquilo, bem-feito e repetido.
Hoje, aos 90 anos, ainda tem a cabeça incendiada de criatividade, mas vive no mundo muito fantasioso da aterosclerose.
De vez em quando vai à cozinha e repete maquinalmente os movimentos de misturar e trabalhar a massa. Pega tigelas, tinas, panelas, farinha, águas, manteiga, leite, açúcar e sal e se distrai com gororobas inexistentes.
Lava as mãos, serena, digna, e deixa tudo para trás, para que alguém termine o impossível.
É triste.
²
E-mail: ninahort@uol.com.br


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