|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Saudades da comida da mãe...
NINA HORTA
Colunista da Folha
Ai, de vez em quando me dá uma
saudade de comida sem responsabilidade, comida na mesa, feita por
mãe ou orientada por mãe, comida
que ninguém botava pensamento
em cima, só comia e achava boa ou
ruim. Você se sentava de mãos lavadas e esperava.
É claro que havia bastidores, uns
certos exercícios preliminares, como ir à feira da Oscar Freire, um
pulinho ao Santa Luzia, mas tudo
muito quieto e simples, sem comentários sobre rúculas orgânicas
ou "frisées".
Era o que era. E, na maioria das
vezes, era alface.
Cadernos de receitas, nenhum.
Livros, o Rosamaria em três tomos, pouco consultado. Elegância
ática da comida mineira, diria Pedro Nava.
Como a mãe era muito
magra e equilibrada
para comer e não
morria de amores por carnes
e peixes, o forte eram os legumes
ao dente, os purês de batata, as
mandioquinhas, carás, inhames,
mexidinhos, arrozes de tico-tico.
O arroz pedia-se solto e cheiroso,
o feijão grosso, uma salada e dois
legumes, um bolinho. Nada disso
interessava muito à criança de cinco anos.
Esperava a "pièce de resistance".
Minto. O feijão puro, em prato
fundo, com pão, era o que havia de
melhor, mas com certeza faltava-lhe o bom tom.
E o prato principal? Repetitivo,
repetitivo e, por se repetir, ia se
aperfeiçoando e afinando os paladares.
No dia da feira eram pescadinhas
fritas acompanhadas por batatas
na manteiga com muita salsa e torrada com espinafre e ovo. Na hora,
um limão espremido sobre o filé.
O frango assado tinha gosto e era
o astro do almoço de domingo,
porque de frango a mãe gostava e
gosta até hoje, tendo sido o terror
das galinhas por quase um século.
Acompanhavam a ave empadinhas de palmito, ou a precediam
empadas de camarão.
Eram perfeitas as empadinhas, e
nenhuma empregada jamais
aprendeu o segredo.
Podiam forrar as fôrmas, e olho
vivo para captar o segredo que variava. Saídas do forno, quentes,
brilhavam marrons onde haviam
sido pinceladas com gema.
Sua característica era o recheio
úmido e farto, nunca seco. Acho
que o x da questão era enchê-las
com o recheio quase líquido que se
adensava no forno.
Esse domingo que se repetia em
frangos era esperado ao sol, nas
calçadas de amarelinha, ou sobre
patins e bicicleta ao mesmo tempo,
num mundo tão seguro e tão feliz
que até doía.
Nos dias da semana o almoço sem o pai era rápido para evitar atraso
na escola. Havia as
estrelas gastronômicas que brilhavam e que a memória não consegue mais imitar.
Bolinho de arroz frito, de colher,
com muita salsa. O arroz era mal
moído, oferecendo ainda a resistência de alguns grãos, ao mesmo
tempo crocante e marrom por fora
e liquefeito por dentro.
A costeleta de porco jamais se repetiu fora daquela casa. Era fina,
esturricada, não tinha gosto ruim
de porco, frita em pouca gordura,
mas guardando dentro uma umidade essencial.
Vinha acompanhada por um tutu molengo, couve muito fina e podia ser comida com a mão para alcançar os melhores pedaços.
O frango ensopado não tinha rival e nunca terá. Verdade das puras. Todo o segredo impossível estava na hora de refogá-lo.
Sabia-se se era hora de começar a
juntar água pelo som do frigir, não
pelo aspecto ou tempo. Chizzzz.
E havia massa feita em casa e dependurada no varal, canja, muitas
sopas e feijoada quase sem gordura, aliás, tudo magro. A mãe da casa jamais admitiu excessos de azeite, óleo ou manteiga.
Fazia uma exceção para o bacalhau, que era assado no azeite, mas
cujo óleo só deixava brilho e sabor.
Para agradar o marido especializou-se em camarões com chuchu,
que fazia na perfeição, sem provar.
De vez em quando um camarão
ou uma coxinha empanada. As
carnes se transformavam em croquetes, picadinhos. Raríssimo um
bife sangrento. Rosbife, sim. Fazia
rosbife cor-de-rosa com... Adivinhem: farofa... e era ótimo.
Não se comiam muitos doces ,
bolos e biscoitos, como na casa das
avós. Frutas, gelatinas, compotas
de pêssegos e figos frescos, pudins.
Engraçado, a dona da casa, a
mais criativa das mulheres até hoje, mantinha uma linha de demarcação na cozinha.
Não exagerava em nada, não
existia dendê nem curry, nada a
não ser simplicidades mineiras e
uns rasgos de Rosamaria. É que
não queria, mesmo. Trivial era
aquilo, bem-feito e repetido.
Hoje, aos 90 anos, ainda tem a cabeça incendiada de criatividade,
mas vive no mundo muito fantasioso da aterosclerose.
De vez em quando vai à cozinha e
repete maquinalmente os movimentos de misturar e trabalhar a
massa. Pega tigelas, tinas, panelas,
farinha, águas, manteiga, leite,
açúcar e sal e se distrai com gororobas inexistentes.
Lava as mãos, serena, digna, e
deixa tudo para trás, para que alguém termine o impossível.
É triste.
²
E-mail: ninahort@uol.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|