São Paulo, sexta, 2 de outubro de 1998

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Chet Baker


Relançamento dos CDs "Chet Baker Sings" e "Chet Baker & Strings" marcam os dez anos da morte do cantor e trompetista que tocava cada música como se fosse a última


ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

A voz surge sozinha num som de "a" aspirado, que começa um pouco abaixo do tom e vai subindo, passa pelo "i", se liquefaz em "v", até chegar ao "ne" de "never", no tempo forte do compasso, que é quando se escuta também o primeiro acorde do piano: "I've never... been in love before". E nenhum de nós jamais esteve "in love before" -não desse jeito, não antes de escutar Chet Baker, cantando 14 baladas esquecidas num bem-vindo relançamento de "Chet Baker Sings" (Columbia).
"It's all too strange and strong", tudo estranho e forte demais, dez anos depois da morte do trompetista e cantor, aos 58 anos, caído da janela de um quarto de hotel em Amsterdã. Não é impossível descrever o som de Chet Baker, cantando ou tocando. Mas explicar? As notas longas do trompete, sem quase nenhum vibrato, e os ataques roucos, mas que logo embarcam em ondas regulares de uma doçura ou loucura amorosa descendo sobre todas as coisas: o grão da voz, a luz do trompete são verdades imediatas da vida, para além do pensamento.
Em "Chet Baker & Strings" (gravação original de 1953, também relançada pela Pacific Records), o trompete canta embalado por seis violinos, duas violas e um violoncelo, em arranjos hollywoodianos.
Além das cordas, tocam também os saxofonistas Zoot Sims, Jack Montrose e Clifford Shank, e o pianista Russ Freeman, um criador maravilhoso e discreto do cool jazz, verdadeiro Horácio para o Chet Hamlet.
Sua composição "The Wind" é um dos pontos altos do CD. A entrada do piano solo, num tema em quintas, as cordas que surgem na segunda metade do refrão, e finalmente o trompete aparecendo no quarto final e tomando conta da música: tudo é muito simples e definitivo, com toda a estranheza e a força de uma canção redobradas pela reticência.
Incluída neste disco, que reúne clássicos como "You Don't Know What Love Is" e "I'm Thru with Love", está também uma das únicas faixas verdadeiramente alegres da extensa discografia -de cerca de 200 títulos- de Baker: "Trickleydidlier", do arranjador Shorty Rogers. Apresentada pelos metais em conjunto, soa quase como uma balada dançante, à maneira das big bands que Chet escutava quando era cadete do exército em Berlim e ainda não descobrira o jazz, mas tem a melodia angulosa e os acordes cromáticos do bebop. Verdadeiramente alegre -será possível?
Era Schubert quem dizia que não existe música alegre; e toda a arte de Chet Baker parece voltada à compreensão triste das coisas.
Trompete e voz não fogem nunca a um registro matizado, e até a alegria aqui é provisória e incerta, resgatada como possível do desencantamento.
Os dois discos dão continuidade à grande coleção, em quatro CDs, "Complete Pacific Jazz Recordings of Chet Baker" e fazem contraponto a "The Stockholm Concerts", com um bônus de oito faixas inéditas (3 CDs, Verve).
A essa altura, virtualmente tudo o que Chet Baker gravou já foi lançado e relançado. Desde a primeira sessão, "Out of Nowhere", de 1952, até as ruínas vocais do fim, como em "Chet Baker Sings" vol. 2 (distribuído aqui no Brasil pela Imagem), com um registro quase incompreensível -tanto das palavras quanto da melodia- de "Little Girl Blue", gravado em março de 1988.
Para quem não conhece outras gravações, a música desse último Chet Baker pode soar como um enigma. Mas, para quem guarda na alma a memória da primeira fase, essa decadência ressoa de sentido e só faz crescer o respeito, quase o espanto, pelo que ele foi capaz de fazer. Vida e obra de Chet Baker compõem hoje, para nós, uma narrativa da transitoriedade. E o que há de mais passageiro do que um som suspenso no ar enquanto vibram os lábios do músico?
A resposta está nas letras dessas dezenas de canções de amor, que Chet Baker gravou e regravou obsessivamente, sempre com o mesmo estilo e a mesma crença nas virtudes da música e do afeto.
"Eu toco cada música como se fosse a última", escreveu numa carta a um amigo. "Eu toco cada última como se fosse a música" seria uma frase oscilando entre a falta de sentido e um significado maior ainda, à luz da sua história pessoal. Recontada inúmeras vezes, em encartes de disco, livros e filmes, dele e sobre ele, essa história encontrou seu tradutor ideal no fotógrafo Bruce Weber, diretor do documentário em longa-metragem "Let's Get Lost".
² Devastação
A passagem constante das imagens de Chet, nos últimos anos, devastado pelas drogas e por tudo o mais, às cenas de arquivo do trompetista de 20 e poucos anos -um James Dean do bop, irradiando charme em programas de televisão- torna a música mais contundente ainda do que já é.
Meses de prisão na Itália, uma surra que o deixou sem dentes e o afastou do trompete por muito tempo, mulheres, filhos, casamentos, abandonos, heroína em doses olímpicas: tudo isso foi fazendo do rosto apolíneo de Chet Baker um mapa de sulcos e rugas. O semideus californiano virou um índio velho e doente, cansado e meigo na sua devastação.
Ouvindo Chet Baker hoje, em retrospecto, não é muito fácil saber em que ele se enquadra: estudiosos mais sérios do jazz o deixam sistematicamente de lado e sua importância talvez não seja mesmo dessa ordem.
De um ponto de vista estritamente musicológico, ele nunca fez muito mais do que interpretar canções, de forma pessoal, mas sem maiores saltos de criação jazzística ou virtuosismo.
Jamais chegou perto da exuberância digital e musical de Dizzy Gillespie, ou Dexter Gordon, ou Bill Evans, entre tantos outros contemporâneos.
Mas a música de Chet Baker é um repertório à parte. Sem ter composto uma canção, ele fez música própria de tudo o que cantou e tocou. Como um grande ator, que confere outra gravidade à menor palavra, ele transformou tudo o que fez numa outra música, "que vem de dentro" como ele dizia, justificando a confiança em seu próprio instinto.
Tocar, nesse caso, não era mais, ou não só, um exercício musical -a não ser que se dê um outro sentido à palavra "música".
A intensidade e o isolamento dessa música são renovadores ou desesperadores, dependendo de quem ouve e quando.
A voz velada de Chet, acompanhada só pelo contrabaixo, no início de "My Funny Valentine" (em qualquer versão), é o bastante para recortar os dias em farrapos, ou para costurar o que restou.
Escutar, neste caso, também não é só uma experiência musical. Ninguém ensina ninguém a tocar como Chet Baker e ninguém ensina ninguém a escutar. Mas, no meio do caminho desta vida, em que cada um vai lutando como pode contra as burrices do coração, suas canções dão uma medida, triste que seja, daquele outro reino sempre à frente, no qual pensamento e sentimento já não se distinguem mais.
Viver à altura desta música talvez não seja possível. Mas a ilusão é salvadora.
Resgatados do desencantamento pela força da música, a gente até pode acreditar, por alguns minutos ao menos, na chance de algo estranho e forte: como um amor que dure ou uma música que fique. As canções de Chet Baker têm mais chance, mas quem sabe o que essa música não veio anunciar?
²
E-mail: nestro@uol.com.br



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