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28ª MOSTRA
Nicolas Klotz filma desafio estético de quase três horas sobre africanos que aportam na França
"A Ferida" aborda distorções da imigração
CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA
"A Ferida" apresenta quase três horas de um idioma cinematográfico extremo, calcado em longas seqüências e planos fixos. "Eu penso que o cinema
é uma arte do tempo e da duração, que permite ao espectador
moldar seu próprio olhar, criar
uma ligação mais inventiva com o
filme", comenta o diretor Nicolas
Klotz, em entrevista exclusiva para a Folha.
O filme radiografa o cotidiano
de imigrantes africanos que aportam na França, nação que colonizou seus territórios e que os obrigou a falar francês na escola, para
tentar nova vida. São amontoados
em um cortiço e na sala secreta de
um aeroporto.
O título diz respeito ao hematoma que a personagem Blandine
(Noëlla Mobassa) exibe na perna,
após ser prensada pela porta de
um ônibus que transporta pessoas dentro do aeroporto. O marido dela, Papi, suando em um terno, espera a mulher durante dias,
do lado de fora, sem saber o que
acontece. Muitos outros africanos
são deportados.
Sobre atores, o diretor revela:
"Nós encontramos muitos dos
"atores", que até hoje são pessoas
em situação indefinida na França,
em associações de sem-teto e em
prédios invadidos".
"Em um dia de tempestade,
nossa roteirista se refugiou em
um café e viu uma menina, acompanhada de um homem muito
brutal. Quando ele foi ao banheiro, a roteirista escreveu um bilhete e colocou na mão da menina.
No dia seguinte, ela telefonou, seu
nome era Noëlla", conta Klotz, sobre a aventura de organizar um
filme com gente "real".
"A Ferida" tem início exatamente no aeroporto em que são
encarcerados os imigrantes. É
uma visão aeroportuária bem
mais severa do que aquela, mais
próxima da de um parque de diversões, apresentada por Steven
Spielberg no recente "O Terminal", por exemplo. O aeroporto
de "A Ferida", diz Klotz, "é uma
instalação fabril".
Lá, os oficiais da polícia, meio
sem rosto, com uniformes negros
e luvas da mesma cor, são descendentes dos policiais robôs de
"THX 1138", de George Lucas. A
arquitetura fria do complexo e a
dramatização violenta que lá
ocorre conduzem as semelhanças
com essa ficção científica para
mais altos patamares: há um certo
traço do "fantástico" em "A Ferida". E é nessa estranheza que
Klotz elaborará o teor da denúncia que recai sobre certos mecanismos do modelo europeu.
Seu filme é decididamente sobre vida de "ratos". Dessa forma,
a câmera nos traz registros de esconderijos e de subterrâneos:
quase sempre ela estará alojada
em uma casa antiga, de paredes
apodrecidas, que será demolida.
Fora da casa, em vagões do metrô.
Ou seja, há um método do "não
ser visto", engendrado na rotina
desses seres, ameaças para a saúde do projeto chamado Europa.
Mas vemos sempre a intimidade,
o lugar e o ponto de vista dos "ratos", dos "monstros infectados",
como se houvesse uma inversão
de lógica no filme de terror fantástico. E é aqui que a Europa desmonta, pois, fechada para os imigrantes e excluída do filme, passa
a não existir mais como imagem.
"Tive inspiração de "Crepúsculo
de uma Raça", de John Ford, filme
de duas horas e 40 minutos no
qual os índios caminham lentamente para um extermínio", afirma Klotz. A linguagem exercida é
dura, a câmera parece ser absorvida pelos ambientes, expressando
tédio e aflição.
Klotz reflete: "O tempo do filme,
vagaroso, orgânico, pode ser uma
questão de luto, de morte. Eu
acho que Blandine, quando chega, é obrigada a fazer luto das ilusões que cultivava".
Nessa aridez, conhecemos a paisagem terceiro-mundista que cerca o bairro no qual fica a casa, onde as condições sanitárias são rústicas. Há estradas em que os caminhões formam nuvens de areia e
cemitérios em que os personagens vão caçar coisas. Quer dizer,
a jogada de Klotz é proporcionar
uma visão africana dentro da
França, um paradoxo. Informar,
com imagens, que não houve deslocamento continental, não existiu viagem. No fim, o autor verbaliza esta idéia, na boca de um dos
personagens, o que não deixa de
ser um desperdício considerável.
Ainda assim, aqui há um grande
desafio de cinema.
A Ferida
La Blessure
Direção: Nicolas Klotz
Produção: França, 2004
Quando: hoje, às 20h30, no MIS
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