São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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28ª MOSTRA

Nicolas Klotz filma desafio estético de quase três horas sobre africanos que aportam na França

"A Ferida" aborda distorções da imigração

CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"A Ferida" apresenta quase três horas de um idioma cinematográfico extremo, calcado em longas seqüências e planos fixos. "Eu penso que o cinema é uma arte do tempo e da duração, que permite ao espectador moldar seu próprio olhar, criar uma ligação mais inventiva com o filme", comenta o diretor Nicolas Klotz, em entrevista exclusiva para a Folha.
O filme radiografa o cotidiano de imigrantes africanos que aportam na França, nação que colonizou seus territórios e que os obrigou a falar francês na escola, para tentar nova vida. São amontoados em um cortiço e na sala secreta de um aeroporto.
O título diz respeito ao hematoma que a personagem Blandine (Noëlla Mobassa) exibe na perna, após ser prensada pela porta de um ônibus que transporta pessoas dentro do aeroporto. O marido dela, Papi, suando em um terno, espera a mulher durante dias, do lado de fora, sem saber o que acontece. Muitos outros africanos são deportados.
Sobre atores, o diretor revela: "Nós encontramos muitos dos "atores", que até hoje são pessoas em situação indefinida na França, em associações de sem-teto e em prédios invadidos".
"Em um dia de tempestade, nossa roteirista se refugiou em um café e viu uma menina, acompanhada de um homem muito brutal. Quando ele foi ao banheiro, a roteirista escreveu um bilhete e colocou na mão da menina. No dia seguinte, ela telefonou, seu nome era Noëlla", conta Klotz, sobre a aventura de organizar um filme com gente "real".
"A Ferida" tem início exatamente no aeroporto em que são encarcerados os imigrantes. É uma visão aeroportuária bem mais severa do que aquela, mais próxima da de um parque de diversões, apresentada por Steven Spielberg no recente "O Terminal", por exemplo. O aeroporto de "A Ferida", diz Klotz, "é uma instalação fabril".
Lá, os oficiais da polícia, meio sem rosto, com uniformes negros e luvas da mesma cor, são descendentes dos policiais robôs de "THX 1138", de George Lucas. A arquitetura fria do complexo e a dramatização violenta que lá ocorre conduzem as semelhanças com essa ficção científica para mais altos patamares: há um certo traço do "fantástico" em "A Ferida". E é nessa estranheza que Klotz elaborará o teor da denúncia que recai sobre certos mecanismos do modelo europeu.
Seu filme é decididamente sobre vida de "ratos". Dessa forma, a câmera nos traz registros de esconderijos e de subterrâneos: quase sempre ela estará alojada em uma casa antiga, de paredes apodrecidas, que será demolida. Fora da casa, em vagões do metrô.
Ou seja, há um método do "não ser visto", engendrado na rotina desses seres, ameaças para a saúde do projeto chamado Europa. Mas vemos sempre a intimidade, o lugar e o ponto de vista dos "ratos", dos "monstros infectados", como se houvesse uma inversão de lógica no filme de terror fantástico. E é aqui que a Europa desmonta, pois, fechada para os imigrantes e excluída do filme, passa a não existir mais como imagem.
"Tive inspiração de "Crepúsculo de uma Raça", de John Ford, filme de duas horas e 40 minutos no qual os índios caminham lentamente para um extermínio", afirma Klotz. A linguagem exercida é dura, a câmera parece ser absorvida pelos ambientes, expressando tédio e aflição.
Klotz reflete: "O tempo do filme, vagaroso, orgânico, pode ser uma questão de luto, de morte. Eu acho que Blandine, quando chega, é obrigada a fazer luto das ilusões que cultivava".
Nessa aridez, conhecemos a paisagem terceiro-mundista que cerca o bairro no qual fica a casa, onde as condições sanitárias são rústicas. Há estradas em que os caminhões formam nuvens de areia e cemitérios em que os personagens vão caçar coisas. Quer dizer, a jogada de Klotz é proporcionar uma visão africana dentro da França, um paradoxo. Informar, com imagens, que não houve deslocamento continental, não existiu viagem. No fim, o autor verbaliza esta idéia, na boca de um dos personagens, o que não deixa de ser um desperdício considerável. Ainda assim, aqui há um grande desafio de cinema.


A Ferida
La Blessure
   
Direção: Nicolas Klotz
Produção: França, 2004
Quando: hoje, às 20h30, no MIS



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