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FERNANDO BONASSI
O Super-Homem Morreu
O Super-Homem tinha
escaras infectadas pela paralisia e entrou em coma, depois
de um ataque cardíaco. O Super-Homem morreu. Nietzsche, que
primeiro pegou sífilis e só depois
ficou louco de tanto pensar, pode
ter imaginado que o Super-Homem desse nisso.
O Super-Homem caiu do cavalo quando atingia o auge do sucesso, superando obstáculos. Não
houve evidência de sabotagem. O
episódio foi considerado um acidente.
Não consta que o cavalo do Super-Homem tenha sido sacrificado. Na convalescência dessa tragédia, o Super-Homem pensou
em sacrificar a si próprio, mas desistiu. O Super-Homem sobrevivia à custa de aparelhos e respirava a troco de eletrodos. O Super-Homem duvidava de sua deficiência. O Super-Homem tinha
52 anos de vida. O Super-Homem
queria fazer pesquisa com embriões humanos, recuperar movimentos e, quem sabe, rejuvenescer. Houve, por isso, quem acusasse o Super-Homem de "vampirizar" os terráqueos, esquecendo-nos todos que, nas horas vagas,
ele era apenas Clark Kent, jornalista com piso de sindicato enquadrado pelo Superpoder do Estado.
O estado das coisas do Super-Homem era praticamente o mesmo há nove anos. O Super-Homem nunca trabalhou tanto como nesse período. O Super-Homem teve dois filhos com uma supermodelo de beleza, deixando
Lois Lane a ver navios a vapor.
O Super-Homem era considerado bonito e mau ator. Os superpoderes dramáticos do Super-Homem foram provados em quatro
episódios superproduzidos em
Hollywood. Tivemos outros Super-Homens, mas esse era mais
épico, mais cínico, mais plástico,
mais cívico, mais vulgarizado e
reprodutível. O Super-Homem tinha sido enredado pelas bilheterias do Homem-Aranha.
Batman nunca rivalizou com o
Super-Homem, por isso era ascético, era cético, era gótico. Arnold
Schwarzenegger jamais se perdoou ter perdido esse casting. Até
os negros mais irados da Califórnia ensolarada passaram a ver o
Super-Homem com outros olhos.
O presidente da República ou o
Super-Homem poderiam ser negros? É possível que Harry Potter
tente ser o Super-Homem quando faz seus passes de mágica, mas
não passa de um marombeiro
maconheiro. Consta que o Super-Homem era mais explosivo que o
TNT porque usava LSD, podendo
enxergar diferente o que não queríamos ver claramente.
O Super-Homem usava cueca
por cima da calça. Marlon Brando, que foi pai de ocasião do Super-Homem, teve sérios problemas com seus filhos e, pelas notícias que chegam do norte, nenhum dos envolvidos jamais superou esse trauma. O trauma do
Super-Homem é antigo e vem de
longe. O Super-Homem foi expulso de casa quando nasceu.
Os estranhos ensaios esotéricos
dos críticos de arte e a divulgação
de sua psicanálise mais íntima
em laudos de saberes acadêmicos
pode significar que esse Super-Homem seja último de uma linhagem extinta. Há mesmo qualquer coisa de Sunset Boulevard
nessa história triste.
O Super-Homem (assim como
as mulheres brasileiras ora grávidas de anencefálicos) perdeu a
batalha da ciência para os fundamentalistas católicos e protestantes. O Super-Homem pensava em
se mudar para a Inglaterra, onde
os reis já haviam dominado a sanha das igrejas. Se os democratas
estivessem no superpoder, teriam
eles pranteado esse Super-Homem? O que o Super-Homem teria feito no lugar de Harry Truman e Lyndon Johnson?
Nove anos parado fizeram do
Super-Homem um homem comum, capaz de mover montanhas de vontade e ressentimento.
As companhias de petróleo ignoraram completamente o destino
do fóssil do Super-Homem, atirando nos pés com seus superpreços. O Super-Homem finalmente
entendeu que o milagre da vida
não é feito de mistério, mas de ignorância. O Super-Homem não
estava preparado para mesquinhas disputas regionais.
A criptonita não podia ajudar
esse Super-Homem contra os outros homens em guerra. O que será feito das células-tronco, todas
perfeitas, que o Super-Homem
deixa de herança? O Super-Homem deixou descendentes, antagonistas e seqüelas: os traficantes
de influência pensam que são o
Super-Homem; os ministros dos
interesses do dinheiro pensam
que são Super-Homem; os presidentes dos bancos centrais infernais pensam que são Super-Homens; os vereadores, padres e
pastores caçadores de homossexuais e os demais matadores de
marginais do horário nobre dessa
televisão pobre de espírito e cheia
de vigor físico pensam que são Super-Homens. Tudo indica que o
lobby do Super-Homem era do
bem, mas pode ser que os lobistas
congressistas fossem do mal.
O Super-Homem era tetraplégico. O Super-Homem tinha uma
supercadeira de rodas. O Super-Homem já não podia desviar a
rota dos aviões terroristas que se
partiram sobre as torres da cidade que escolheu para morrer. A
autobiografia do Super-Homem
se intitulou "Ainda Sou Eu/Memórias" e, pela primeira vez, o
Super-Homem não precisou convencer ninguém de sua razão pela
força. O Super-Homem voltou a
se transformar num herói romântico, como sempre tinha sido.
O Super-Homem lega patrimônio, uma fundação e um exemplo. O Super-Homem foi cremado
e as cinzas, arremessadas pela
viúva em local indeterminado. A
atriz Dana Morosini agradeceu
aos milhões de fãs que amaram
seu marido, o Super-Homem. A
viúva do Super-Homem é uma
mulher. No último dia 10 de outubro, o Super-Homem morreu em
Nova York. Agora a humanidade
ameaçada por si própria terá de
se virar consigo mesma.
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