São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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FERNANDO BONASSI

O Super-Homem Morreu

O Super-Homem tinha escaras infectadas pela paralisia e entrou em coma, depois de um ataque cardíaco. O Super-Homem morreu. Nietzsche, que primeiro pegou sífilis e só depois ficou louco de tanto pensar, pode ter imaginado que o Super-Homem desse nisso.
O Super-Homem caiu do cavalo quando atingia o auge do sucesso, superando obstáculos. Não houve evidência de sabotagem. O episódio foi considerado um acidente.
Não consta que o cavalo do Super-Homem tenha sido sacrificado. Na convalescência dessa tragédia, o Super-Homem pensou em sacrificar a si próprio, mas desistiu. O Super-Homem sobrevivia à custa de aparelhos e respirava a troco de eletrodos. O Super-Homem duvidava de sua deficiência. O Super-Homem tinha 52 anos de vida. O Super-Homem queria fazer pesquisa com embriões humanos, recuperar movimentos e, quem sabe, rejuvenescer. Houve, por isso, quem acusasse o Super-Homem de "vampirizar" os terráqueos, esquecendo-nos todos que, nas horas vagas, ele era apenas Clark Kent, jornalista com piso de sindicato enquadrado pelo Superpoder do Estado.
O estado das coisas do Super-Homem era praticamente o mesmo há nove anos. O Super-Homem nunca trabalhou tanto como nesse período. O Super-Homem teve dois filhos com uma supermodelo de beleza, deixando Lois Lane a ver navios a vapor.
O Super-Homem era considerado bonito e mau ator. Os superpoderes dramáticos do Super-Homem foram provados em quatro episódios superproduzidos em Hollywood. Tivemos outros Super-Homens, mas esse era mais épico, mais cínico, mais plástico, mais cívico, mais vulgarizado e reprodutível. O Super-Homem tinha sido enredado pelas bilheterias do Homem-Aranha.
Batman nunca rivalizou com o Super-Homem, por isso era ascético, era cético, era gótico. Arnold Schwarzenegger jamais se perdoou ter perdido esse casting. Até os negros mais irados da Califórnia ensolarada passaram a ver o Super-Homem com outros olhos.
O presidente da República ou o Super-Homem poderiam ser negros? É possível que Harry Potter tente ser o Super-Homem quando faz seus passes de mágica, mas não passa de um marombeiro maconheiro. Consta que o Super-Homem era mais explosivo que o TNT porque usava LSD, podendo enxergar diferente o que não queríamos ver claramente.
O Super-Homem usava cueca por cima da calça. Marlon Brando, que foi pai de ocasião do Super-Homem, teve sérios problemas com seus filhos e, pelas notícias que chegam do norte, nenhum dos envolvidos jamais superou esse trauma. O trauma do Super-Homem é antigo e vem de longe. O Super-Homem foi expulso de casa quando nasceu.
Os estranhos ensaios esotéricos dos críticos de arte e a divulgação de sua psicanálise mais íntima em laudos de saberes acadêmicos pode significar que esse Super-Homem seja último de uma linhagem extinta. Há mesmo qualquer coisa de Sunset Boulevard nessa história triste.
O Super-Homem (assim como as mulheres brasileiras ora grávidas de anencefálicos) perdeu a batalha da ciência para os fundamentalistas católicos e protestantes. O Super-Homem pensava em se mudar para a Inglaterra, onde os reis já haviam dominado a sanha das igrejas. Se os democratas estivessem no superpoder, teriam eles pranteado esse Super-Homem? O que o Super-Homem teria feito no lugar de Harry Truman e Lyndon Johnson?
Nove anos parado fizeram do Super-Homem um homem comum, capaz de mover montanhas de vontade e ressentimento. As companhias de petróleo ignoraram completamente o destino do fóssil do Super-Homem, atirando nos pés com seus superpreços. O Super-Homem finalmente entendeu que o milagre da vida não é feito de mistério, mas de ignorância. O Super-Homem não estava preparado para mesquinhas disputas regionais.
A criptonita não podia ajudar esse Super-Homem contra os outros homens em guerra. O que será feito das células-tronco, todas perfeitas, que o Super-Homem deixa de herança? O Super-Homem deixou descendentes, antagonistas e seqüelas: os traficantes de influência pensam que são o Super-Homem; os ministros dos interesses do dinheiro pensam que são Super-Homem; os presidentes dos bancos centrais infernais pensam que são Super-Homens; os vereadores, padres e pastores caçadores de homossexuais e os demais matadores de marginais do horário nobre dessa televisão pobre de espírito e cheia de vigor físico pensam que são Super-Homens. Tudo indica que o lobby do Super-Homem era do bem, mas pode ser que os lobistas congressistas fossem do mal.
O Super-Homem era tetraplégico. O Super-Homem tinha uma supercadeira de rodas. O Super-Homem já não podia desviar a rota dos aviões terroristas que se partiram sobre as torres da cidade que escolheu para morrer. A autobiografia do Super-Homem se intitulou "Ainda Sou Eu/Memórias" e, pela primeira vez, o Super-Homem não precisou convencer ninguém de sua razão pela força. O Super-Homem voltou a se transformar num herói romântico, como sempre tinha sido.
O Super-Homem lega patrimônio, uma fundação e um exemplo. O Super-Homem foi cremado e as cinzas, arremessadas pela viúva em local indeterminado. A atriz Dana Morosini agradeceu aos milhões de fãs que amaram seu marido, o Super-Homem. A viúva do Super-Homem é uma mulher. No último dia 10 de outubro, o Super-Homem morreu em Nova York. Agora a humanidade ameaçada por si própria terá de se virar consigo mesma.


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