São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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DISCO/"LIVE IN TOKYO"

O imprevisível Brad Mehldau e as verdades da ilusão da música

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A nota "lá" começa a pulsar, calmamente, na região média do piano, e não pára mais. Sustenta ou atravessa harmonias, virtualmente do começo ao fim de "Someone to Watch Over Me" (George e Ira Gershwin), assim como um "sol" atravessa e sustenta as harmonias de "How Long Has This Been Going On?" (idem), na outra ponta desse disco tão bem tramado.
As artes de Brad Mehldau (que se apresenta no Tim Festival sexta) têm muito desse tipo de engenho; e as habilidades de composição só favorecem a invenção espontânea. Ao vivo em Tóquio, o pianista americano gravou um dos discos definitivos de sua carreira, que a essa altura é a nossa carreira de ouvintes também.
Que o disco comece em lá bemol maior, para depois subir a lá e terminar em sol não pode ser coincidência. Ainda mais quando se nota que Mehldau começa e termina tocando duas canções do cantor e compositor inglês Nick Drake (morto em 1974, aos 26 anos), sendo que a última, "River Man", por um lado retoma, em outro registro, a sua gravação no antológico "Art of the Trio, Vol. 3" (98) e, por outro, dá continuidade às longas notas "sol" repetidas pelos sopros na última faixa do disco orquestral "Largo" (02).
O fato de ele gravar canções de rock e pop já é notável, no contexto exclusivista do jazz. E o que ele faz desfaz o limite dessas canções, para liberar o que têm de mais secreto e rico. Um gesto característico é a separação de pequenas células -algum intervalo repetido, ou um padrão rítmico básico-, que vão crescendo e se metamorfoseando, até chegar a texturas polifônicas complexas, com camadas de música deslizando umas sobre as outras.
Em alguns casos, o resultado leva a pensar nos "Estúdios para Pianola", de Conlon Nancarrow (1912-97), com cada mão tocando num tempo próprio. Uma das passagens mais extraordinárias desse tipo começa aos 5min25s de "From This Moment On" (Cole Porter) e envolve três planos diferenciados. Aqui o processo de contaminação parece ter se invertido: são as energias do rock que vêm revitalizar os standards jazzísticos, segundo uma nova ordem das coisas, onde as fronteiras deixam de ser relevantes.
Só depois dessa educação se pode escutar a monumental "Paranoid Android", quase 20 minutos de música recriando um clássico vanguardista do Radiohead. Se a canção original já era um amálgama de três, agora ganhou espaço para multiplicar potências, valendo-se de toda uma enciclopédia pianística. Depois de "Monk's Dream" (Thelonius Monk), esse outro sonho faz da paranóia uma alucinação impressionante e arranca de Brad Mehldau outro repertório harmônico, mais duro e abrasivo, capaz de resistir até às belezas de seu mais habitual encantamento.
Em canções como as de Gershwin e Porter, o encantamento -harmonias sensuais lancinantes, melodias dolorosas, ou dolorosamente felizes- toca em verdades que só mesmo a ilusão da música pode nos dar. Em "River Man", depois, a simples oscilação maior-menor, dramatizada por um padrão do baixo e desafiada pela certeza daquele "sol" repetido, traduz o máximo num mínimo, no espírito da letra lembrada. São as liberdades do "homem do rio", ao mesmo tempo imprevisíveis e naturais, como é a arte do mais arrojado e mais natural, mais inventivo e mais simples, mais imprevisível e impressionante pianista da nova geração.


Live in Tokyo
    
Artista: Brad Mehldau
Lançamento: Warner
Quanto: R$ 45, em média



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