São Paulo, quinta-feira, 02 de dezembro de 2004

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ANÁLISE

Evento equilibrou política, experimentação e humor

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

A pulverização dos principais prêmios do 37º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (só "Cascalho" não ganhou nada) revela o equilíbrio e a heterogeneidade que marcaram a competição, terminada anteontem.
Do drama político ("Cabra-Cega") à comédia de costumes ("Bendito Fruto" e "O Diabo a Quatro"), do "nordestern" ("Cascalho") a duas vertentes totalmente opostas de documentário ("Peões" e "500 Almas"), houve de tudo em Brasília, e nenhum longa conseguiu conquistar categoricamente a supremacia sobre os outros.
Bom sinal, talvez, pois, se não emergiu do festival nenhuma obra-prima, pelo menos o cinema brasileiro mostrou vigor e renovação em várias frentes.
No documentário, por exemplo. O vencedor do prêmio principal, "Peões", filme de grande riqueza humana e substância histórica, é um passo adiante no caminho personalíssimo trilhado por Eduardo Coutinho em busca do inefável que se manifesta no contato com o "outro", seja este o operário, a mãe-de-santo ou o catador de lixo.
Uma outra via do documentário é trilhada por "500 Almas", de Joel Pizzini, uma notável tentativa de imersão cinematográfica numa cultura à beira da extinção, a da nação indígena guató.
Em vez do simples registro, o filme de Pizzini procura, com talento e rigor, as correspondências audiovisuais que traduzam características dos guatós: o nomadismo, a dispersão, a língua tonal, o ritmo fluvial do cotidiano.
É um ensaio inventivo e poético sobre a trajetória "sui generis" de uma cultura que se acreditava extinta, mas que renasceu pela ação de missionários, lingüistas e etnólogos -mais ou menos como uma vida que se mantém à custa de aparelhos.

Ficção
No campo da ficção, o grande vencedor, "Cabra-Cega", de Toni Venturi, é uma nova abordagem de um tema que vem se constituindo quase num gênero à parte na nossa cinematografia: o ajuste de contas com os anos da repressão militar à guerrilha.
A originalidade de "Cabra Cega" reside na circunscrição da ação entre as paredes de um apartamento paulistano, dando ênfase às relações afetivas entre uns poucos personagens colhidos no olho do furacão. Uma curiosa fusão entre os temas dos dois longas anteriores de Venturi, o documentário "O Velho" e o drama intimista "Latitude Zero".
Mas talvez a surpresa mais grata do festival tenham sido as comédias urbanas, em particular o excelente "Bendito Fruto", de Sérgio Goldenberg, filme centrado num roteiro inteligente, num elenco de primeira linha e sobretudo num hábil jogo de cintura no trato de temas delicados como o racismo, o homossexualismo e o amor na maturidade.
Mesmo "O Diabo a Quatro", de Alice de Andrade, comédia descabelada cuja irregularidade reflete talvez o grande número de roteiristas (nada menos do que sete), também contribui para um arejamento do gênero, hoje dominado pelas inócuas "comedinhas de relacionamento" tributárias das séries da Globo e das "sitcoms" norte-americanas.
Ainda temos humor. Talvez seja esta a notícia mais animadora que vem de Brasília.


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