São Paulo, sexta-feira, 02 de dezembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Mar - Personagem de Sylvio Pinto

Tema recorrente da pintura universal, o mar tem dois representantes na arte brasileira: José Pancetti e Sylvio Pinto. O primeiro, mais divulgado e enaltecido, prendeu-se ao tema pelo fato de ter sido marinheiro e por se fixar em praias geralmente desertas, captando da paisagem marinha a luz e a solidão. O segundo, mais abrangente e humano, buscou no mar a sua fonte mais funda e complexa. Suas marinhas -que continuam disputadas por museus e colecionadores- nem sempre são parecidas com as de Pancetti. Vez ou outra, os dois (que foram amigos e companheiros) adotam a mesma perspectiva, a mesma luz, o mesmo sentido pictórico.
Sylvio Pinto viveu mais e viu mais. O mar, para ele, nem sempre é reflexão e solidão. É também faina, diversão e enigma, é o grande mar do qual nasceu a primeira molécula de vida. Pintou também outros temas, aqui e no exterior, seduzido pela luz de Paris, da Espanha e de Portugal. Mas 80% de sua obra têm o personagem que mais o intriga e o identifica: o mar.
Nascido em 17 de março de 1918, entre o Jacaré e o Riachuelo, subúrbios do Rio de Janeiro, Sylvio Pinto da Silva foi um carioca típico, um brasileiro que tem um modo especial de caminhar pela vida, de sentir o mundo e, por isso, de expressar o mundo e a vida. Em linhas gerais, não faz muita força para ser alguma coisa, vai levando e se levando ao acaso de seu temperamento e de sua disponibilidade.
No caso dele, as primeiras pinceladas foram dadas sob a orientação paterna, numa oficina de propaganda. Começou a fazer cartazes e a descobrir talento e formosura na arte. Ele dizia que seu nome (Pinto) é indicativo presente do verbo "pintar". E não fez outra coisa ao longo da vida.
Conheceu José Pancetti, que o levou a freqüentar o Núcleo Bernardelli, onde teve como companheiros Manoel Santiago, Quirino Campofiorito, Edson Mota, Milton Dacosta, José Rescala e Bustamante Sá. Contudo, foi com o próprio Pancetti que mais se enturmou. Juntos, montaram um pequeno estúdio em Copacabana. Nesse começo de vida, não se fixara ainda nos temas que o marcariam como um dos pintores mais populares e expressivos da moderna pintura brasileira. Fez cenários para teatro e enredos para os primeiros desfiles das escolas de samba. O contato com os temas populares seria uma de suas marcas. O que não o impediria de repetir temas clássicos, como uma impressionante "Descida da Cruz", influenciado, é claro, pelas obras de Rubens, Rembrandt e Tiepolo.
Foi o gosto comum pelo mar que levou os dois companheiros a se fixarem num tema que daria glória a ambos. Pancetti fez vida profissional na marinha mercante. Era, para todos os efeitos, um marinheiro. Sylvio Pinto via o mar do mesmo modo, mas o sentia de outra forma. Suas praias têm gente, suas baías têm navios e não apenas barcos, como nos de Pancetti. O colorido, a tonalidade de alguns quadros podem parecer gêmeos -e essa aproximação em muito afetaria o juízo da crítica em relação à obra de Sylvio Pinto.
Dono de técnica mais acurada, com mais escola e informação, Sylvio não ficaria preso apenas à poesia do mar. Dele extraiu uma temática social e humana, são barcos indo e vindo, navios que chegam e partem, gente em volta trabalhando, seja na pescaria artesanal, que ainda prevalece em nosso litoral, ou no duro ofício da carga e descarga -para ele, o mar é cenário amplo, majestoso e silente para a luta de cada dia, o amor de cada noite.
Sylvio Pinto ainda não foi devidamente estudado e reverenciado. Mas é na sua obra que encontraremos não apenas o mar que tanto influenciou a alma e o imaginário do povo brasileiro. Para ele, o mar é também, às vezes, "o espelho do espírito de Deus rude e terrível" de que falava o poeta.
O nome e a obra do pintor foram prejudicados pela pouca exposição que a crítica e a mídia dedicaram ao artista, engolido pelo destaque que foi dado a Pancetti, o qual teve a seu favor a boca de fogo acionada pelo velho Partido Comunista Brasileiro. Sobretudo em seus períodos de clandestinidade, o PCB tinha como estratégia cultural promover seus adeptos e simpatizantes e, não raras vezes, sabotar aqueles que não integravam sua lista preferencial. Prática que não é exclusividade nacional mas adotada por todos os PCs do mundo.
Para citar alguns casos, embora sem entrar no mérito dos eleitos pelo Partidão: Manuel Bandeira teve menos exposição do que Carlos Drummond de Andrade. Colega e amigo de Portinari, com quadros em todos os museus de mundo, Teruz não tem verbete nas enciclopédias editadas por membros do PCB. Reclamei esta falha junto a Antônio Houaiss. Em carta a mim dirigida, Houaiss se justificou dizendo que Teruz recebera citação no verbete "Arte Brasileira". Foi lembrado naquela base: "Fulano, fulano, Teruz e outros". Jorge Amado teve trombones enquanto foi dócil ao Partidão, José Lins do Rego só não foi esquecido porque também era grande demais. E o próprio Jorge, ao deixar o Partido, passou a ser criticado e até negado -inutilmente, é claro.
Acima e além das estratégias políticas e ideológicas, dez anos após a sua morte, Sylvio Pinto tem, agora, uma exposição inaugurada em Portugal.


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