São Paulo, sábado, 02 de dezembro de 2006

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Crítica/história

"1421": eram os chineses astronautas?

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ainda bem que o livro era emprestado. Senão, daria vontade de fazer como um professor universitário de Cingapura, Geoff Wade, fez: processar a editora por vender gato por lebre. "1421 - O Ano em que a China Descobriu o Mundo", de Gavin Menzies, é vendido como se fosse livro de história. Seria mais adequado se estivesse na seção de contos de fadas ou ficção. A edição original, em inglês, falava em descoberta da América; agora a coisa foi mais longe, e é todo o mundo que passou a ser achado pelos antigos nautas chineses.
Poderia ser um livro interessante. No começo do século 15, os chineses enviaram frotas pelos oceanos Índico e Pacífico comandadas por um almirante eunuco, Zheng He. Fizeram explorações importantes, com frotas compostas de grandes juncos. Na época, os portugueses mal tinham saído da sua praia lusitana, e com navios bem menos imponentes.
Se as coisas continuassem daquele jeito, os chineses é que teriam chegado primeiro à Europa, e não os europeus à China. Descobrindo a América e boa parte da África no caminho.
Mas o imperador chinês desistiu da expansão naval. Depois de Zheng He, a China se recolheu em si mesma. Os portugueses continuaram navegando até Vasco da Gama chegar na Índia, no final do século 15.
A história é conhecida. Menzies, um ex-comandante de submarinos na Marinha Real do Reino Unido, não se conformava com ela. Queria provar que os chineses tinham andado por mares nunca dantes navegados. O resultado é um livro completamente maluco.
"Publish or perish" (publique ou pereça), diz o ditado básico da pesquisa. Se você não divulga o que descobriu, não fez nada. Menzies pesquisou 15 anos antes de publicar. "Perisher" é o apelido do curso de formação de comandantes de submarinos na Royal Navy, um dos mais exigentes do planeta. Não é formação suficiente para reescrever a história mundial.

Pêlo em ovo
"1421" lembra em tudo o best-seller "Eram os Deuses Astronautas?", de Erich von Däniken. São autores especializados em ver pêlo em ovo.
Qualquer detalhe de um mapa ou achado arqueológico é aclamado como "prova" de uma teoria, deixando de lado tudo o que possa invalidá-la. Numa palestra em São Paulo, Däniken mostrou fotos de índios brasileiros cobertos com roupas de palha -uma "prova" de que estariam imitando os astronautas. Menzies abusa da mesma loucura. Seria divertido, se não fosse bobagem pura.
Por exemplo, uma pintura mexicana descoberta no século 19 mostraria um animal que seria um cão da raça chinesa sharpei. Segundo Menzies, um dos caninos dessa raça teria escapado da frota chinesa e parado nas ilhas Falkland/Malvinas, onde teria transado com uma raposa, criando uma raça hoje extinta... Os chineses também teriam capturado preguiças-gigantes na Patagônia e deixado uma escapar na Austrália. Seria uma preguiça muito ágil, certamente. Só que as preguiças-gigantes estão extintas nas Américas há milhares de anos...
E por aí vai. Na falta de uma informação, ele especula. As maiores explorações teriam sido em anos sobre os quais não há relatos, porque teriam sido queimados. As colônias que os chineses teriam espalhado pelo mundo foram destruídas. Os navios só passaram por locais primitivos, de habitantes incapazes de fazer relatos claros.
Lembra as visitas dos discos-voadores, que nunca pousam de dia na cidade. É sempre em lugar ermo, à noite, onde só os ufólogos podem descobri-los.

Pesquisa irrisória
O historiador Robert Finlay, da Universidade de Arkansas, fez uma resenha do livro de Menzies para a revista "Journal of World History": "O raciocínio em "1421" é inexoravelmente circular, sua evidência é espúria, sua pesquisa é irrisória [...], suas citações são desmazeladas e suas afirmações são despropositadas", diz. Pegou pesado? Leia o livro para entender.
Finlay vê um lado positivo em "1421". O livro pode ser usado por professores de história para mostrar como não fazer a coisa. Os alunos podem competir em busca das passagens mais amalucadas do livro. Ele cita uma boa. Os navios chineses teriam transportado para as Américas milhões de contas de vidro que na China eram usadas como auxiliar sexual, costuradas na pele da cabeça do pênis para excitar a parceira (ou parceiro). "Se de fato os capitães-eunucos das frotas de Zheng He tentaram doutrinar os povos que encontravam nessa prática exótica, não é difícil imaginar porque todas as fabulosas colônias chinesas no Novo Mundo fracassaram entre os anos de 1421 a 1492", brinca.


1421 - O ANO EM QUE A CHINA DESCOBRIU O MUNDO  
Autor: Gavin Menzies
Tradução: Ruy Jungmann
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 69 (552 págs.)


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