São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

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Mônica Bergamo

@ - bergamo@folhasp.com.br

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
O ex-traficante João Guilherme Estrela, que hoje é produtor musical e vai lançar um disco, ao lado de Selton Mello, no restaurante Guimas, na Gávea, no Rio

Iogurte, drogas e João

Selton Mello está percorrendo universidades do Brasil para debater "Meu Nome não é Johnny". O filme, que será lançado em circuito comercial no dia 4 de janeiro, é baseado no livro de Guilherme Fiúza e conta a vida de João Guilherme Estrela, jovem de classe média alta do Rio que, viciado em cocaína, virou traficante nos anos 90, foi preso e viveu em cadeias e manicômios. A platéia se espanta quando o filme acaba e, luzes acesas, Estrela surge ao lado de Selton para participar do papo. Eles conversaram com a coluna. Abaixo, um resumo:

 
LIBERDADE E AVENTURA

FOLHA - Como os jovens que vocês encontram nos debates encaram as drogas?
JOÃO -
Sinto que eles estão precisando conversar. Muitos vêm falar comigo depois dos debates, contam que já fumaram, que já beberam. SELTON - Te pegam num canto?
JOÃO - Direto. Direto. Acontece com eles a mesma coisa que aconteceu comigo no passado: não foi por causa de problemas familiares que eu fumei maconha. Foi porque a galera na rua tava naquela aventura de liberdade, de experimentação. Eu experimentei morrendo de medo. Apavorado. Mas é essa coisa do grupo, que começa a tomar ecstasy, a fumar maconha, e rola uma certa pressão.
Então, eu sinto que muitos, muitos jovens estão sofrendo essa pressão. E estão com medo de entrar numa história que é uma roubada mesmo, né? E eu aconselho a não experimentar porque você pode ter propensão a um problema maior.

FOLHA - Problemas familiares influíram na sua adesão às drogas?
JOÃO -
Quando eu comecei, a minha família estava ótima, excelente. Se quiser uma resposta na lata, é essa: eu queria liberdade e aventura. Essa é a resposta, na mosca.

LIBERAÇÃO DAS DROGAS
JOÃO - Bom, eu poderia ser a favor se tivesse um pacote social enorme para ajudar as pessoas das comunidades carentes a terem outro tipo de sistema econômico circulando para que elas possam sobreviver. Eu não acho que seja simples liberar. Você pode transformar isso aqui num caos, um caos social.
SELTON - Eu não tenho uma opinião formada. E não tenho que ter. E, já emendando no assunto que virá, de quão desgastante foi a repercussão da minha declaração [Selton disse ao jornal "O Globo" que já experimentou "todos os tipos de drogas" e que "não dá para culpar um cara que fuma um baseado" pelo tráfico]: eu entendi como é difícil ser uma figura pública. E acho que eu só tenho que dar uma opinião se eu tiver muita certeza dela. Senão, é melhor não falar nada.

LADO ROMÁRIO

FOLHA - O que te incomodou?
SELTON -
Eu sou um cara discreto. Há 25 anos trabalho e você não acha coisas bombásticas a meu respeito na internet. Foi a primeira vez em que eu me vi na berlinda. Então foi esquisito. Me senti estranho. Por outro lado, não me arrependo. A gente vive numa época muito politicamente correta. Eu acho um saco ver coletiva da seleção brasileira pós-jogo. São todos iguaizinhos. É assim, "o professor pediu pra gente fazer o quatro três dois, eu achei importante a entrada do Kaká". Não tem um que diga assim: "Puta saco! Ele me tirou com dez minutos de jogo, eu tava jogando pra caralho". Como o Romário é, sabe? Mas foi a primeira vez que eu senti que...

FOLHA - ...ser Romário não é fácil.
SELTON -
É. Ser Romário não é fácil. Ser Lobão não é fácil. O Lázaro [Ramos] foi falar no jornal que estava se sentindo sufocado pela imprensa, que estava colocando o casamento dele em xeque. Você ia ver lá [na internet] as 400 opiniões sobre isso, era nível assim: "Lázaro, cala a sua boca e volta para Salvador e vai trabalhar no teatro Olodum, que pelo menos lá você não era conhecido". Pô, então eu não dou mais opinião sobre nada? Eu não sei tudo! Eu não tenho opinião sobre o aborto.

FOLHA - Mas o filme é sobre drogas, não sobre aborto.
SELTON -
É, assim como eu cheirei ralo [no filme "O Cheiro do Ralo"]. Ninguém pergunta se sou viciado em cheirar ralo.

FOLHA - É que não existe gente viciada em cheirar ralo no Brasil.
JOÃO -
Existe sim, tem gente que adora um esgoto.
SELTON - O De Niro, ídolo, falou assim: "Quanto menos as pessoas souberem a meu respeito, mais vão acreditar nos personagens que eu faço". Adoro isso. Não tem que saber da minha vida, não. Eu tô solteiro há cinco anos. Não sou um padre. Eu trabalho bem por aí. Você não vê foto minha saindo com as pessoas. É o meu lado Romário.

MULHERES E DUENDES

FOLHA - Você já disse que sonha com uma mulher inteligente, bonita, que te ame, não goste muito de dinheiro e não queira aparecer.
JOÃO -
Manda fabricar essa aí!

FOLHA - E concluiu dizendo que acreditava em duendes.
SELTON -
Sei lá. Tô vivendo a vida aí. Não apareceu essa figura ainda não.
ATOR-IOGURTE

FOLHA - Você já disse que não quer ser um "ator-iogurte".
SELTON -
Eu sempre falo: o Tony Ramos é um gênio. Porque ele faz uma novela atrás da outra e cada trabalho é completamente distinto. É um gigante. Eu, como não tenho a capacidade dele, preferi me retirar para fazer coisas mais elaboradas, com mais calma, como o cinema. E novela nada mais é do que uma ficção dividida em três blocos para passar o comercial.
Então eu prefiro fazer logo o comercial, que passa no meio. Eu vou lá, gravo dois dias, ganho o que eu ganharia fazendo uma novela inteira e neste tempo faço três filmes, entendeu?

FOLHA - Tem alguma publicidade que você não faça?
SELTON -
Já fiz de cerveja, tudo.

FOLHA - O ministro da Saúde criticou quem faz anúncio de cerveja.
SELTON -
Nêgo fala muito. Fernando Meirelles é um dos maiores cineastas do mundo. Quando ele foi fazer cinema, encheram o saco dele porque ele era da publicidade. Estou dirigindo um filme ["Feliz Natal"]. Vão criticar: "Ah, um ator fazendo um filme". Nêgo fala muito. Enche o saco! Todo mundo fala muito. Talvez eu agora, inclusive, esteja falando muito para quem está lendo essas letras.

CLASSE MÉDIA
JOÃO - Esse negócio da classe média ser culpada pelo tráfico, eu acho muito engraçado esse tipo de factóide. A classe média, média alta, jovem, praticamente não consome cocaína mais. A droga que eles consomem não passa pelo morro.
SELTON - A gente vive a era da droga sintética. Toda hora você abre o jornal, tem o traficante jovem, de classe média, sendo preso com ecstasy. Eu tenho gente próxima que usa. É uma geração bem louca, que toma ecstasy no fim de semana e toma muita coisa para malhação.

FOLHA - "Tropa de Elite", que levantou esse tema, está "atrasado"?
JOÃO -
No morro, você não compra ecstasy. E acho que a violência está um pouco separada disso [consumo de drogas]. Tirar o Estado, tirar todo mundo e botar a classe média culpada, pô, é muito fácil, né?
Se fosse na época da inquisição, pegaríamos a classe média, tacaríamos no fogo e pronto.

FOLHA - O que acham de operações como a invasão do Complexo do Alemão, em que a polícia matou 19 pessoas?
JOÃO -
Os caras volta e meia têm que fazer guerra. Eles se encontram e trocam tiros. Eu acho que é uma grande perda de tempo e de dinheiro público, porque você não está fazendo nada para criar uma nova geração saudável e bacana.

FOLHA - Num debate, uma senhora brigou dizendo que não existia traficante legal, como o filme mostra. Existe?
JOÃO -
Ah, eu sou um [risos]. Eu conheci gente legal. A venda de mercadoria proibida, ilegal, não faz do cara um ser humano assim ou assado. O camelô vende DVD pirata, é ilegal. Isso vai definir se ele é um grande filho da puta ou é um cara bacana? O que eu vi muito na cadeia foi um romantismo robinhoodiano. Os caras contam as aventuras de forma tão romântica, tão romântica que você quer entrar nela [risos]. Esses caras chegam a um ponto às vezes de bastante maldade no coração. Mas todos foram crianças, tiveram sonhos, os olhos brilhavam. Chegou um certo momento em que isso foi quebrado na vida deles de forma radical. No morro, 90% das pessoas ralam que nem loucos, ganhando mal, muito mal. É uma resistência de caráter absoluta. Os outros 10% vão para o crime.

Frases

"Foi a primeira em vez que eu me vi na berlinda. Então foi esquisito. Me senti estranho."


SELTON MELLO, comentando suas declarações sobre consumo de drogas e financiamento de tráfico

"Eu conheci gente legal. A venda de mercadoria proibida, ilegal, não faz do cara um ser humano assim ou assado."

JOÃO GUILHERME ESTRELA, sobre o tempo em que ficou preso


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