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Crítica / "O Enigma Vazio"
Autor usa estratégia inteligente, mas é traído pela impaciência
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Em 1887,
um humorista chamado Eugène Bataille expôs em Paris uma Mona Lisa
fumando cachimbo. Ele integrava um grupo intitulado "Os
Incoerentes", que, entre várias
estripulias, levou a uma galeria
um cavalo inteiramente pintado de vermelho, e apresentou
batatas, pães e roupas como
obras de arte.
Isso tudo aconteceu décadas
antes de Marcel Duchamp pintar um famoso bigode no rosto
da mesma Mona Lisa, e de expor um urinol numa mostra de
artes plásticas. Eugène Bataille
e os "Incoerentes" viraram
uma simples curiosidade histórica, enquanto Duchamp foi
saudado como autor de uma
das maiores revoluções estéticas do século 20.
O poeta e ensaísta Affonso
Romano de Sant'Anna não é o
primeiro a se irritar com o culto
a Duchamp e com a quantidade
de piadas e vigarices que ocupa
o cenário da arte contemporânea. Das latinhas de Piero Manzoni, contendo supostamente
"merda d'artista" (este o título
da sua obra de 1968) aos quadros monocromáticos de Yves
Klein, os gestos aparentemente
contestatários da vanguarda já
provocaram em mais de um crítico (James Gardner, Robert
Hughes, George Steiner, Tom
Wolfe, Ferreira Gullar) o grito
de que "o rei está nu".
Ao contrário do que acontece
no conto infantil de Andersen,
entretanto, esse tipo de grito
não parece surtir efeito. É como se os adversários desse tipo
de arte e os seus admiradores
falassem linguagens absolutamente distintas, recaindo sobre quem reclama o estigma de
ser ignorante.
Em "O Enigma Vazio", Affonso Romano de Sant'Anna
adota uma estratégia polêmica
mais inteligente. Não se contenta em condenar Marcel Duchamp ou Cy Twombly de um
ponto de vista externo - "Isso
não vale nada!"-, mas resolve
analisar o discurso dos críticos
que se empenham em elogiá-los.
Textos de Octavio Paz e de
Jean Clair sobre Duchamp, de
Roland Barthes sobre
Twombly, de Jacques Derrida
sobre Van Gogh, são assim analisados ao longo dos vários capítulos deste livro.
Affonso Romano de Sant'Anna não tem dificuldades em
apontar exemplos de delírio interpretativo e de abuso lógico
nos textos que comenta. Tudo
seria mais convincente e eficaz,
todavia, se o autor não perdesse
tão rapidamente a paciência
com seu objeto. Mal começa a
expor as interpretações de Paz
ou de Barthes, e não consegue
se conter; é como se expulsasse
o ator de cena, para tomar a palavra.
Sente-se falta, assim, de um
pouco mais de espírito de ruminação acadêmica, e, principalmente, de bom humor e ironia
neste livro. Acadêmicos podem
ser meio chatos, mas têm de sobra uma frieza e uma malícia
que livraria "O Enigma Vazio"
de um certo ar de amadorismo.
No meio de suas refregas, Affonso Romano de Sant'Anna
invoca Thomas Kuhn, a teoria
do caos e a lógica de Aristóteles,
na tentativa de adquirir tanta
autoridade intelectual quanto
possível. Mas os saltos argumentativos, as citações de segunda mão e os constantes erros de revisão nas indicações
bibliográficas terminam fazendo seu livro assemelhar-se ao
famoso elefante solto numa loja de louça. E, quando a louça
em questão é composta de peças tão resistentes como o urinol de Duchamp, só se pode lamentar que o estrago realizado
pelo autor não tenha sido tão
notável quanto ele parece acreditar.
O ENIGMA VAZIO - IMPASSES
DA ARTE E DA CRÍTICA
Autor: Affonso Romano de Sant'Anna
Editora: Rocco
Quanto: R$ 49 (336 págs.)
Avaliação: regular
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