São Paulo, sábado, 03 de janeiro de 2009

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Crítica / "O Enigma Vazio"

Autor usa estratégia inteligente, mas é traído pela impaciência

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Em 1887, um humorista chamado Eugène Bataille expôs em Paris uma Mona Lisa fumando cachimbo. Ele integrava um grupo intitulado "Os Incoerentes", que, entre várias estripulias, levou a uma galeria um cavalo inteiramente pintado de vermelho, e apresentou batatas, pães e roupas como obras de arte.
Isso tudo aconteceu décadas antes de Marcel Duchamp pintar um famoso bigode no rosto da mesma Mona Lisa, e de expor um urinol numa mostra de artes plásticas. Eugène Bataille e os "Incoerentes" viraram uma simples curiosidade histórica, enquanto Duchamp foi saudado como autor de uma das maiores revoluções estéticas do século 20.
O poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant'Anna não é o primeiro a se irritar com o culto a Duchamp e com a quantidade de piadas e vigarices que ocupa o cenário da arte contemporânea. Das latinhas de Piero Manzoni, contendo supostamente "merda d'artista" (este o título da sua obra de 1968) aos quadros monocromáticos de Yves Klein, os gestos aparentemente contestatários da vanguarda já provocaram em mais de um crítico (James Gardner, Robert Hughes, George Steiner, Tom Wolfe, Ferreira Gullar) o grito de que "o rei está nu".
Ao contrário do que acontece no conto infantil de Andersen, entretanto, esse tipo de grito não parece surtir efeito. É como se os adversários desse tipo de arte e os seus admiradores falassem linguagens absolutamente distintas, recaindo sobre quem reclama o estigma de ser ignorante.
Em "O Enigma Vazio", Affonso Romano de Sant'Anna adota uma estratégia polêmica mais inteligente. Não se contenta em condenar Marcel Duchamp ou Cy Twombly de um ponto de vista externo - "Isso não vale nada!"-, mas resolve analisar o discurso dos críticos que se empenham em elogiá-los.
Textos de Octavio Paz e de Jean Clair sobre Duchamp, de Roland Barthes sobre Twombly, de Jacques Derrida sobre Van Gogh, são assim analisados ao longo dos vários capítulos deste livro. Affonso Romano de Sant'Anna não tem dificuldades em apontar exemplos de delírio interpretativo e de abuso lógico nos textos que comenta. Tudo seria mais convincente e eficaz, todavia, se o autor não perdesse tão rapidamente a paciência com seu objeto. Mal começa a expor as interpretações de Paz ou de Barthes, e não consegue se conter; é como se expulsasse o ator de cena, para tomar a palavra.
Sente-se falta, assim, de um pouco mais de espírito de ruminação acadêmica, e, principalmente, de bom humor e ironia neste livro. Acadêmicos podem ser meio chatos, mas têm de sobra uma frieza e uma malícia que livraria "O Enigma Vazio" de um certo ar de amadorismo.
No meio de suas refregas, Affonso Romano de Sant'Anna invoca Thomas Kuhn, a teoria do caos e a lógica de Aristóteles, na tentativa de adquirir tanta autoridade intelectual quanto possível. Mas os saltos argumentativos, as citações de segunda mão e os constantes erros de revisão nas indicações bibliográficas terminam fazendo seu livro assemelhar-se ao famoso elefante solto numa loja de louça. E, quando a louça em questão é composta de peças tão resistentes como o urinol de Duchamp, só se pode lamentar que o estrago realizado pelo autor não tenha sido tão notável quanto ele parece acreditar.

O ENIGMA VAZIO - IMPASSES DA ARTE E DA CRÍTICA
Autor: Affonso Romano de Sant'Anna
Editora: Rocco
Quanto: R$ 49 (336 págs.)
Avaliação: regular



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