São Paulo, sábado, 03 de janeiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ LITERÁRIO

Vivendo no rascunho


Com abertura impactante, primeiro romance de Estevão Azevedo investe em revolta de personagem de papel


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

"O DRAMA começou quando eu, ao perceber que era personagem de um livro, amputei o dedo mínimo da mão esquerda [...], o que dificultaria a leitura e me possibilitaria, talvez, morrer." A abertura impactante de "Nunca o Nome do Menino", primeiro romance de Estevão Azevedo, potiguar radicado em SP e autor dos contos reunidos em "O Som do Nada Acontecendo" (Edições K), entrega sem demora sua linhagem. Uma protagonista que, de chofre, em um parágrafo, se confessa não apenas personagem, mas inconformada com seu estatuto imaginário, traz à mente uma infinidade de referências fortes. Remete tanto ao Borges de "As Ruínas Circulares" (citado numa das epígrafes do livro), à vida sonhada de Calderón de la Barca, quanto aos recentes roteiros de Charlie Kaufman ("Adaptação", "Quero Ser John Malkovich") e Zach Helm ("Mais Estranho que a Ficção").
O apelo e a elasticidade do tema são inegáveis. Permitem falar do que realmente interessa na narrativa (as fronteiras instáveis entre a experiência e sua representação, fato e ficção), discutir eficácia e finalidade do jogo literário, enquanto se joga. Cartas na mesa e aposta alta desde o primeiro lance, o desafio está em refrear o desdobramento ainda mais explosivo que o gesto inicial da mutilação, dramático e ab-rupto, arremessando o leitor no colo de um conflito insustentável, faz prever.
Como freio, Azevedo introduz um contraponto narrativo, em retrospecto, alimentado pela memória. A mulher-marionete, indignada com seu criador-manipulador, busca no primeiro amor de adolescência sinais remotos da crise presente. Mas, aqui, à confusão natural que toda lembrança encobre (forjada, fragmentária, recomposta ao sabor da necessidade), soma-se o complicador de saber-se criatura de papel e estar incumbida de criticar a própria inverosimilhança ocasional.
Cindida nestas duas linhas narrativas, a que dá conta das consequências da insurreição da personagem e a que recompõe sua identidade a partir da origem, a armação estrutural do romance é engenhosa, mas o autor sofre para, nos meandros, manter-se à altura da promessa inicial. Paralelos felizes entre a experiência do primeiro amor e a invenção ficcional -combinando, ambos, corporeidade e projeção de desejos, descoberta, fantasia e frustração- perdem-se em meio à profusão de passagens líricas em que a ironia autoconsciente, essencial à ideia por trás do livro, se dilui. Seu enredo bem tramado, contudo, faz de "Nunca o Nome do Menino" estreia digna e sugere que Estevão Azevedo tem fôlego para mais.

NUNCA O NOME DO MENINO
Autor: Estevão Azevedo
Editora: Terceiro Nome
Quanto: R$ 26 (184 págs.)
Avaliação: bom



Texto Anterior: Crítica / "O Enigma Vazio": Autor usa estratégia inteligente, mas é traído pela impaciência
Próximo Texto: Vitrine
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.