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CONTARDO CALLIGARIS
Irã, Nigéria, Paquistão, Arábia, Iêmen e EUA
O que têm eles em comum? Não
é uma brincadeira. Há algo que só
é próprio desses países.
Aqui vai: são os únicos países
onde são justiçados criminosos
que eram menores de 18 anos no
momento do crime. Os EUA estão
em primeiro lugar na lista, com o
maior número dessas execuções
desde 1990: dez.
Quando menciono esses dados
da Anistia Internacional, recebo
às vezes comentários do tipo:
"Pois é, no Brasil os grupos de extermínio se encarregam das
crianças criminosas. É muito
pior-segue o comentário-, pois
elas são mortas por vingança ou
por medo, sem justiça. Nos EUA,
ao menos, a coisa é feita segundo
a lei".
Em suma, pensam meus interlocutores: "Se for preciso matar criminosos menores, melhor que seja
feito pela comunidade em sua expressão legal e não por assassinos
pagos por comerciantes exasperados. A primeira solução seria mais
civilizada".
Tendo a pensar o contrário. Exterminadores e jagunços podem
até gozar de impunidade, mas
não são os apóstolos do bem social: eles são criminosos como
suas vítimas. O ato dos carrascos
oficiais, ao contrário, é apresentado como o bem social. Eles representam uma comunidade que
pratica a execução de menores como forma de justiça.
Há um consenso ocidental e
moderno de que a pena de morte
não deve se aplicar a criminosos
menores, pois eles são suscetíveis
de mudar. Por isso eles são poupados e destinados à reabilitação.
Não é que confiemos nos adolescentes. Confiamos no poder pedagógico dos adultos, em nossa capacidade de corrigir os jovens.
Nisso os norte-americanos não
são diferentes de nós. Como se explica, então, sua presença nessa
estranha lista?
Os cinco colegas dos EUA são
países de cultura tradicional
-onde a tradição pode e deve dizer o que é certo ou errado, quem
deve ser punido, quando e como.
Ao contrário, para nós ocidentais
e modernos, a moral é um terreno
minado, difícil, contraditório. Somos nós que devemos decidir o
que é bem ou mal. O fundamento
da justiça é tão subjetivo que, para julgar, nos identificamos com o
culpado.
A sugestão cristã "quem estiver
sem pecado, jogue a primeira pedra" é o começo do fim da certeza
ética. Em suma, nossa autoridade
moral é normalmente duvidosa e
hesitante. Condenar deveria ser,
para nós, um tormento.
Justamente, executar qualquer
culpado supõe uma dupla certeza
moral, difícil em nossa cultura: a
certeza de reconhecer um mal sem
desculpa e a certeza de sermos suficientemente diferentes do culpado para que a condenação não seja hipócrita. Executar menores
implica mais uma certeza que
chega a contradizer um dos princípios básicos de nossa cultura: o
sujeito ocidental moderno se define por seu potencial de mudança,
por seus futuros possíveis. Ora, para executar um menor, é necessário acreditar que ele não mudará.
Ao entrar na lista, os EUA -supostamente o protótipo de país
ocidental moderno- parecem
abandonar a atormentada incerteza moral que define a modernidade. Por qual milagre? Será que
eles produziram, enfim, uma nova comunidade tão coesa que
consegue legislar com o mesmo tipo de certeza moral de uma sociedade tradicional?
Seria o sonho de Rousseau realizado. Melhor e mais firme do que
a própria tradição, a vontade geral dos cidadãos orienta a todos.
Se for o caso, perdoem, mas não
me dá vontade de festejar. Gosto
de nosso sentimento de mediocridade moral. A incerteza do juízo,
a hesitação em julgar por achar
que somos tão indignos quanto os
acusados, é o que temos moralmente de melhor. Sem isso, nossos
gestos repressivos parecem pantomimas de palhaços hipócritas e
facilmente sanguinários.
Desconfio da certeza moral norte-americana até porque, curiosamente, ela parece estar crescendo
nos últimos anos. Felizmente para
a carne mas infelizmente para o
espírito norte-americano, a década que acaba foi de grande prosperidade para os EUA. Ora, o
pragmatismo norte-americano é
retroativo, ou seja, considera que,
se algo deu certo, é porque mereceu a aprovação divina. A prosperidade econômica dos EUA produz, assim, autorização moral.
Nos enriquecemos, portanto somos os eleitos. Porque duvidaríamos de nossas escolhas morais se,
obviamente, é Deus que traça nosso caminho? Quem discordar, que
se cuide.
P.S.
1.Clovis Rossi, em sua correspondência de Davos, relata que
Umberto Eco preocupou empresários e políticos, anunciando o triste fim da ética tradicional. Engraçado. Será que a incerteza do julgamento moral que nos acompanha e vem crescendo há quase
meio milênio é tão dura de
aguentar? Não sei o que Eco tinha
na cabeça, mas -em vez de chorar sobre as certezas perdidas-
me parece urgente aceitar que
nossa incerteza pode ser uma virtude. E, portanto, desconfiar de
novas perniciosas certezas com as
quais não sei se estamos a fim de
viver.
2. O Estado de Illinois acaba de
decidir uma moratória das execuções, por medo dos erros judiciários. Pois, desde 77, 13 condenados
à morte foram inocentados e liberados. Na falta de uma boa incerteza moral, já é bom reconhecer
que a gente não é infalível.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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