São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2001

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WALTER SALLES

Dois filmes em estado de graça

"O cinema é a verdade 24 vezes por segundo", disse uma vez Jean-Luc Godard. Não é mais -essa é a impressão que se tem ao ver a grande maioria dos filmes em cartaz.
Duas raridades aportaram recentemente em São Paulo para nos lembrar como o cinema pode ser uma experiência enriquecedora, que pode nos seduzir e nos espelhar enquanto coletividade: "As Coisas Simples da Vida" ("Yi Yi"), de Edward Yang, e "O Filho Adotivo", de Aktan Abdykalykov. Duas pequenas obras-primas, que nos ajudam a entender por que os asiáticos fazem, hoje, o melhor cinema que podemos ver.
Em "As Coisas Simples da Vida", uma velha está em coma. Ao mesmo tempo, seu neto de oito anos, Yang-Yang, descobre a vida. De um lado, desaparecimento. Do outro, desvendamento. A pedido do médico, que tenta mantê-la em vida, parentes sucedem-se em torno da velha doente. Contam para ela o seu dia-a-dia, na tentativa de estimulá-la. São relatos sobre os desejos e frustrações de cada um, que evidenciam o vazio espiritual de uma Taiwan que paga o preço de um milagre econômico conquistado a qualquer custo.
Casamentos, desencontros amorosos, funerais. A vida segue seu curso, alternando momentos de aceleração (o ritmo frenético dos centros urbanos asiáticos, a impessoalidade crescente dos meios de comunicação, a solidão de trens e aeroportos) e instantes em que o tempo parece suspenso (o medo da morte, o confronto com aquilo que é eterno e que não se consegue entender).
O menino Yang-Yang é o ponto de confluência de um filme pensado como um quadro pontilhista, em que dezenas de pequenas partículas se fundem num todo indivisível. Yang-Yang pergunta ao pai se é possível entender inteiramente aquilo que está à nossa volta ou apenas a metade. Não espera pela resposta. Sai fotografando as pessoas de costas, "para que elas possam ver além daquilo que está à sua frente".
É um achado que guia o filme como um todo -o invisível como complemento do visível. Ao contrário da televisão, que pratica o tudo-mostrar, Edward Yang opta por não dramatizar a imagem. Só mostra parte daquilo que acontece, mantendo a câmera à distância do melodrama. Uma tentativa de suicídio e um assassinato acontecem fora de quadro. Algo impensável no cinema americano contemporâneo (mesmo em sua face mais moderninha, como no caso de "Pulp Fiction"...).
Há também momentos de pura graça e magia. O encantamento de Yang-Yang pelo que é líquido e uterino, a descoberta que o menino faz do universo feminino, o questionamento bem-humorado do mundo dos adultos. Impossível, aqui, não se lembrar de Borges: "Não há um homem que não seja um descobridor. Começa descobrindo o amargo, o salgado, o liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tantas letras do alfabeto. Passa pelos rostos, pelos mapas, pelos animais e pelos astros. Conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase total de sua própria ignorância".
Beshkempir, o menino de "O Filho Adotivo", também é um descobridor. Por coincidência, a parte invisível da sua história também lhe será revelada com a morte de uma avó. É nesse momento que Beshkempir descobre que foi adotado. Essa revelação vai obrigá-lo a reconsiderar todos os seus códigos afetivos e a resistir aos olhares daqueles que passam a julgá-lo.
"O Filho Adotivo" é, a exemplo de "As Coisas Simples da Vida", o relato de uma aprendizado feito com delicadeza, inteligência e humor. Estamos numa sociedade que nos é aparentemente mais difícil de entender, o mundo pré-industrial do Quirguistão. No entanto, ficamos igualmente encantados pela descrição inspirada de experiências que nos são comuns: a primeira atração sexual, os desejos e os embates entre amigos, os conflitos e as mesquinharias familiares.
Como em "As Coisas Simples da Vida", temos a impressão de que as cenas à nossa frente estão acontecendo livremente, sem mise-en-scène. Mas Abdykalykov é um diretor que vai além da descrição naturalista do mundo. Se a câmera é quase sempre invisível, ela também é, às vezes, utilizada para criar imagens sensoriais, pinceladas que descrevem o estado de espírito dos personagens. O resultado é uma experiência cinematográfica singular, hipnótica e tão fascinante quanto o filme de Edward Yang.
Existe um outro ponto comum aos dois filmes: a opção pela simplicidade. Há quem argumente que o cinema iraniano, por exemplo, peque por excesso nesse sentido (um filme = duas criancinhas mais um balão branco). Ver esse tipo de cinema é, às vezes, tido como uma experiência entediante. Prefiro me aliar à tese de Sven Nykvist, o diretor de fotografia de Ingmar Bergman, para quem hoje tudo no cinema é excessivamente complicado: a direção, a luz, a atuação. "Levei 30 anos para chegar à simplicidade", diz.
Não há nada simples, na verdade, em "As Coisas Simples da Vida" ou em "O Filho Adotivo". As tramas são teias complexas, mais finamente curtidas que na maioria das histórias hollywoodianas.
A chave dessa sofisticada simplicidade é dada pelo próprio Edward Yang, numa entrevista recente : "Em chinês, "yi" que dizer um. É a primeira palavra do nosso dicionário. Já "yi-yi" quer dizer dois, um mais um".
Não somos yi, mas, sim, yi-yi. Partes de um todo indissolúvel. Um mais um, desaparecimento e renascimento, memória e esquecimento, início e fim. Yang-Yang e você, nós, refletidos na tela do cinema, como uma evidência.


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