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WALTER SALLES
Dois filmes em estado de graça
"O cinema é a verdade 24
vezes por segundo", disse
uma vez Jean-Luc Godard. Não é
mais -essa é a impressão que se
tem ao ver a grande maioria dos
filmes em cartaz.
Duas raridades aportaram recentemente em São Paulo para
nos lembrar como o cinema pode
ser uma experiência enriquecedora, que pode nos seduzir e nos espelhar enquanto coletividade:
"As Coisas Simples da Vida" ("Yi
Yi"), de Edward Yang, e "O Filho
Adotivo", de Aktan Abdykalykov.
Duas pequenas obras-primas,
que nos ajudam a entender por
que os asiáticos fazem, hoje, o melhor cinema que podemos ver.
Em "As Coisas Simples da Vida", uma velha está em coma. Ao
mesmo tempo, seu neto de oito
anos, Yang-Yang, descobre a vida. De um lado, desaparecimento. Do outro, desvendamento. A
pedido do médico, que tenta
mantê-la em vida, parentes sucedem-se em torno da velha doente.
Contam para ela o seu dia-a-dia,
na tentativa de estimulá-la. São
relatos sobre os desejos e frustrações de cada um, que evidenciam
o vazio espiritual de uma Taiwan
que paga o preço de um milagre
econômico conquistado a qualquer custo.
Casamentos, desencontros
amorosos, funerais. A vida segue
seu curso, alternando momentos
de aceleração (o ritmo frenético
dos centros urbanos asiáticos, a
impessoalidade crescente dos
meios de comunicação, a solidão
de trens e aeroportos) e instantes
em que o tempo parece suspenso
(o medo da morte, o confronto
com aquilo que é eterno e que não
se consegue entender).
O menino Yang-Yang é o ponto
de confluência de um filme pensado como um quadro pontilhista, em que dezenas de pequenas
partículas se fundem num todo
indivisível. Yang-Yang pergunta
ao pai se é possível entender inteiramente aquilo que está à nossa
volta ou apenas a metade. Não
espera pela resposta. Sai fotografando as pessoas de costas, "para
que elas possam ver além daquilo
que está à sua frente".
É um achado que guia o filme
como um todo -o invisível como
complemento do visível. Ao contrário da televisão, que pratica o
tudo-mostrar, Edward Yang opta
por não dramatizar a imagem. Só
mostra parte daquilo que acontece, mantendo a câmera à distância do melodrama. Uma tentativa de suicídio e um assassinato
acontecem fora de quadro. Algo
impensável no cinema americano
contemporâneo (mesmo em sua
face mais moderninha, como no
caso de "Pulp Fiction"...).
Há também momentos de pura
graça e magia. O encantamento
de Yang-Yang pelo que é líquido e
uterino, a descoberta que o menino faz do universo feminino, o
questionamento bem-humorado
do mundo dos adultos. Impossível, aqui, não se lembrar de Borges: "Não há um homem que não
seja um descobridor. Começa descobrindo o amargo, o salgado, o
liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tantas letras do
alfabeto. Passa pelos rostos, pelos
mapas, pelos animais e pelos astros. Conclui pela dúvida ou pela
fé e pela certeza quase total de sua
própria ignorância".
Beshkempir, o menino de "O Filho Adotivo", também é um descobridor. Por coincidência, a parte invisível da sua história também lhe será revelada com a morte de uma avó. É nesse momento
que Beshkempir descobre que foi
adotado. Essa revelação vai obrigá-lo a reconsiderar todos os seus
códigos afetivos e a resistir aos
olhares daqueles que passam a
julgá-lo.
"O Filho Adotivo" é, a exemplo
de "As Coisas Simples da Vida", o
relato de uma aprendizado feito
com delicadeza, inteligência e humor. Estamos numa sociedade
que nos é aparentemente mais difícil de entender, o mundo pré-industrial do Quirguistão. No entanto, ficamos igualmente encantados pela descrição inspirada de
experiências que nos são comuns:
a primeira atração sexual, os desejos e os embates entre amigos,
os conflitos e as mesquinharias familiares.
Como em "As Coisas Simples da
Vida", temos a impressão de que
as cenas à nossa frente estão
acontecendo livremente, sem mise-en-scène. Mas Abdykalykov é
um diretor que vai além da descrição naturalista do mundo. Se a
câmera é quase sempre invisível,
ela também é, às vezes, utilizada
para criar imagens sensoriais,
pinceladas que descrevem o estado de espírito dos personagens. O
resultado é uma experiência cinematográfica singular, hipnótica e
tão fascinante quanto o filme de
Edward Yang.
Existe um outro ponto comum
aos dois filmes: a opção pela simplicidade. Há quem argumente
que o cinema iraniano, por exemplo, peque por excesso nesse sentido (um filme = duas criancinhas
mais um balão branco). Ver esse
tipo de cinema é, às vezes, tido como uma experiência entediante.
Prefiro me aliar à tese de Sven
Nykvist, o diretor de fotografia de
Ingmar Bergman, para quem hoje tudo no cinema é excessivamente complicado: a direção, a
luz, a atuação. "Levei 30 anos para chegar à simplicidade", diz.
Não há nada simples, na verdade, em "As Coisas Simples da Vida" ou em "O Filho Adotivo". As
tramas são teias complexas, mais
finamente curtidas que na maioria das histórias hollywoodianas.
A chave dessa sofisticada simplicidade é dada pelo próprio Edward Yang, numa entrevista recente : "Em chinês, "yi" que dizer
um. É a primeira palavra do nosso dicionário. Já "yi-yi" quer dizer
dois, um mais um".
Não somos yi, mas, sim, yi-yi.
Partes de um todo indissolúvel.
Um mais um, desaparecimento e
renascimento, memória e esquecimento, início e fim. Yang-Yang
e você, nós, refletidos na tela do cinema, como uma evidência.
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