São Paulo, quinta-feira, 03 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES

Biografia feita em 1973 por Peter Watkins mostra o pintor como um refém de seu desejo e ganha exibições na França

Pesadelos de Edvard Munch renascem no cinema

JEAN-LUC DOUIN
DO "MONDE"

Duramente criticada em seu lançamento em 1973, a biografia do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944) feita por Peter Watkins é relançada na França.
A obra foi considerada por Ingmar Bergman "um trabalho de gênio". Profundamente subjetivo (o cineasta coloca nele seu próprio "grito"), o filme utiliza um método revolucionário: uma montagem alquímica mistura a elaboração de quadros, uma cronologia alterada por reminiscências obsessivas, o "leitmotiv" de uma memória assombrada por cenas-chaves e intervenções de personagens, que, como se estivessem sendo entrevistados, assumem juízos morais e estéticos.
O alcance dessas confissões-intervenções filmadas cara a cara incomoda o esquema pedagógico do projeto, já que Watkins quis que elas fossem relativamente sem controle, espaços de liberdade oferecidos aos atores não profissionais envolvidos na aventura.
Carregado de angústia, de cores espasmódicas, de ambiências crepusculares, de tensão sexual e de palidezes moribundas, "Edvard Munch" explora o contexto ideológico (o trabalho infantil na indústria), médico-familiar (tuberculose hereditária, agonias sem fim, mulheres e crianças cuspindo sangue), artística (salões de café enfumaçados onde se reunia a boemia de Christiania, como o pintor Christian Krohg e o escritor "sedicioso" Hans Jaeger).
Desenhando freneticamente, arranhando, entalhando a tela, incidindo a matéria com um nervosismo revelador da intensidade emocional, Munch encarna um homem refém do desejo e assombrado por dois fantasmas -a doença e o puritanismo.
Refaz ao infinito as hemorragias pulmonares dos parentes, o ambiente de fogo e enxofre que o cerca. Os anjos negros que o velaram no berço têm aqui a figura de um pai que lhe impõe o retorno para casa toda noite para a prece diária ou as máscaras de uma burguesia hipócrita que reprova seus companheiros e demoniza a libido.
Nessa segunda metade do século 19, a polícia controla a prostituição e as doenças venéreas, enquanto à margem dos salões que vivem de condenar as blasfêmias se reproduzem artistas que "falam de Marx e de Darwin" e mulheres "insubmissas", decididas a viver sua própria lei.
Munch, como seus amigos Jaeger, Ibsen ou Strindberg, é refém de um doloroso paradoxo. Ele faz parte desses homens decididos a denunciar a escravidão do casamento e a não mortificar seus instintos, mas que sofrem ao ver suas amantes se converterem ao amor livre e enxergam as mulheres liberadas como vampiras.
O filme é ritmado por esse triplo pesadelo: tosses de sangue sobre travesseiros brancos, ecos recorrentes de choros e gemidos do artista; a eterna visão dessa senhora Heiberg, uma mulher casada de quem ele deseja a pele macia, mas que se entrega a outro homem e que ele passa a perseguir e a ameaçar ("Você acabará feia e deformada, e eu rirei disso!").
Expressão íntima da melancolia, de uma angústia que colore céus e nuvens de vermelho-sangue, a pintura de Munch é divagação de um frustrado, tensão psíquica e sexual, exacerbação de uma "alma ferida" por pulsões não satisfeitas e apaixonada por madonas com rostos cadavéricos.
Esse é o segredo de seu imaginário, em que seres apaixonados de rostos disformes se devoram e uma sexualidade voraz freqüentemente termina no túmulo. Daí vem o equívoco, denunciado por Kokoschka: "O espírito de Munch lhe permite diagnosticar um terror justamente onde se acreditava estar o progresso social".
Aí mora o sublime horror de Munch, marca de uma subversão carnal e de um imaginário cósmico. Corpos condenados ao grito infinito no torpor das noites por essa maldição que ainda faz sentido: "O ciúme não vem do medo de perder, mas do de partilhar".

Texto Anterior: Contardo Calligaris: "Closer - Perto Demais": por que somos infelizes em amor?
Próximo Texto: Obras estão desaparecidas há cinco meses
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.