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COMENTÁRIO
No silêncio asfixiante, os sinais aparecem
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Quieto, muito quieto é que a
gente chama o amor: como
em quieto as coisas chamam a
gente", escreve Guimarães Rosa
em "Grande Sertão: Veredas".
Fabiano, o retirante de "Vidas
Secas", quase não fala. Em "A Terceira Margem do Rio", o personagem do pai decide abandonar a
palavra. Severino, de "Morte e Vida Severina", ao contrário desses
dois, fala muito, mas suas palavras são evidentemente artificiais,
como se ele fosse um boneco de
ventríloquo com idéias que não
estão exatamente nele. E em todas
essas narrativas, como em muitas
outras nas quais se explora o silêncio, fala mais alto a paisagem.
Ennis del Mar ("ilha do mar"), o
personagem-ilha de "O Segredo
de Brokeback Mountain", quase
não articula palavras, menos ainda do que Jack Twist, o outro protagonista, seu companheiro, que
também fala pouco. Talvez caiba
a arriscada generalização de que
quanto mais próximo o homem
da paisagem, menor a necessidade de palavras. E onde se ouve o
silêncio, as coisas parecem saltar,
lêem-se mais e melhor os sinais.
Palavras existem para explicar,
definir, mas também (e tantas vezes principalmente) para mascarar. No silêncio asfixiante de "O
Segredo de Brokeback Mountain" os sinais aparecem e as coisas se atritam. Sinais e coisas se tocam tão de perto que a paisagem e
os olhares se eriçam, chegando a
incomodar a nós, alguns assustados espectadores falantes.
Afinal, não é um sinal a cidade
onde acontece o núcleo da ação
chamar-se exatamente Sinal? Como o sinal que carimba o lombo
dos bois e dos carneiros que os
personagens tangem isolados no
alto da montanha? E o silencioso
Ennis, caubói entre bruto e medroso, ter o nome de "ilha do
mar"? E Jack, o mais ativo, ter o
sobrenome Twist, que significa
dobra, desvio? Sinais que, fosse o
filme povoado de palavras, talvez
passassem despercebidos, mas
que, nesse caso, ganham um outro significado. As palavras se esvaziam, o silêncio se preenche e os
sinais/significados se acham então nas brechas onde falta a fala.
Twist, a dobra, é o personagem
que provoca as dobras do filme e
da sexualidade de Ennis. Como
uma bola lançada "com efeito"
(também "twist"), os caminhos
propostos por Jack vão na direção
do alvo, mas seguindo uma linha
errada e sinuosa como a de uma
montanha e não como a de uma
planície reta, tipo "cheerleader"/
shopping center/ rodeio das famílias machistas do Texas e do Wyoming, onde acontece o filme.
Jack Twist quer entortar o destino, assumindo um homossexualismo impossível, e Ennis del Mar
se cala. Mas mesmo "twisted", ou
até por causa disso, Jack mantém
uma inocência que pode ser absurda, mas é corajosa. Muito mais
corajosa do que a passividade medrosa de sua mulher, Lureen, e
que a de seu sogro, "que acumulam zeros na calculadora e cheiram o dinheiro como uma cobra
espiando o buraco do rato".
Mais corajosa também do que a
mudez de Ennis que, ciente das
restrições da realidade, formula a
frase mais triste do filme: "Se você
não pode remediar, é preciso suportar". E é justamente pela inocência de Jack e pelo seu efeito
"twisted" que seu destino não poderia ser feliz. Embora nada garanta que o "straight" (ao mesmo
tempo reto e heterossexual), pleno de palavras e de truques, tenha
um destino muito melhor.
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