São Paulo, sexta-feira, 03 de fevereiro de 2006

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COMENTÁRIO

No silêncio asfixiante, os sinais aparecem

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Quieto, muito quieto é que a gente chama o amor: como em quieto as coisas chamam a gente", escreve Guimarães Rosa em "Grande Sertão: Veredas".
Fabiano, o retirante de "Vidas Secas", quase não fala. Em "A Terceira Margem do Rio", o personagem do pai decide abandonar a palavra. Severino, de "Morte e Vida Severina", ao contrário desses dois, fala muito, mas suas palavras são evidentemente artificiais, como se ele fosse um boneco de ventríloquo com idéias que não estão exatamente nele. E em todas essas narrativas, como em muitas outras nas quais se explora o silêncio, fala mais alto a paisagem.
Ennis del Mar ("ilha do mar"), o personagem-ilha de "O Segredo de Brokeback Mountain", quase não articula palavras, menos ainda do que Jack Twist, o outro protagonista, seu companheiro, que também fala pouco. Talvez caiba a arriscada generalização de que quanto mais próximo o homem da paisagem, menor a necessidade de palavras. E onde se ouve o silêncio, as coisas parecem saltar, lêem-se mais e melhor os sinais.
Palavras existem para explicar, definir, mas também (e tantas vezes principalmente) para mascarar. No silêncio asfixiante de "O Segredo de Brokeback Mountain" os sinais aparecem e as coisas se atritam. Sinais e coisas se tocam tão de perto que a paisagem e os olhares se eriçam, chegando a incomodar a nós, alguns assustados espectadores falantes.
Afinal, não é um sinal a cidade onde acontece o núcleo da ação chamar-se exatamente Sinal? Como o sinal que carimba o lombo dos bois e dos carneiros que os personagens tangem isolados no alto da montanha? E o silencioso Ennis, caubói entre bruto e medroso, ter o nome de "ilha do mar"? E Jack, o mais ativo, ter o sobrenome Twist, que significa dobra, desvio? Sinais que, fosse o filme povoado de palavras, talvez passassem despercebidos, mas que, nesse caso, ganham um outro significado. As palavras se esvaziam, o silêncio se preenche e os sinais/significados se acham então nas brechas onde falta a fala.
Twist, a dobra, é o personagem que provoca as dobras do filme e da sexualidade de Ennis. Como uma bola lançada "com efeito" (também "twist"), os caminhos propostos por Jack vão na direção do alvo, mas seguindo uma linha errada e sinuosa como a de uma montanha e não como a de uma planície reta, tipo "cheerleader"/ shopping center/ rodeio das famílias machistas do Texas e do Wyoming, onde acontece o filme.
Jack Twist quer entortar o destino, assumindo um homossexualismo impossível, e Ennis del Mar se cala. Mas mesmo "twisted", ou até por causa disso, Jack mantém uma inocência que pode ser absurda, mas é corajosa. Muito mais corajosa do que a passividade medrosa de sua mulher, Lureen, e que a de seu sogro, "que acumulam zeros na calculadora e cheiram o dinheiro como uma cobra espiando o buraco do rato".
Mais corajosa também do que a mudez de Ennis que, ciente das restrições da realidade, formula a frase mais triste do filme: "Se você não pode remediar, é preciso suportar". E é justamente pela inocência de Jack e pelo seu efeito "twisted" que seu destino não poderia ser feliz. Embora nada garanta que o "straight" (ao mesmo tempo reto e heterossexual), pleno de palavras e de truques, tenha um destino muito melhor.


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