São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2007

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Crítica/romance

Fresán usa cultura pop para examinar criador de Peter Pan

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A visão de Georges Bataille (1897-1962) sobre a literatura como reencontro com a infância nunca teve mais adequada comprovação do que por meio da vida e obra de James Matthew Barrie.
"Todas as crianças crescem -menos uma", assim inicia a saga de Peter Pan, epígrafe perfeita também para esse escritor escocês nascido em 1860 e morto em 1937, cuja existência é abordada de maneira curiosa em "Jardins de Kensington" (ed. Conrad), do argentino Rodrigo Fresán.
Praticante de uma narrativa caudalosa e afeita às digressões, Fresán (revelado na célebre antologia latino-americana "McOndo" e candidato a vir à Flip 2007, Festa Literária Internacional de Parati) não se conformou, entretanto, em escrever uma investigação ortodoxa sobre o esquisitão Barrie, alvo já bastante pródigo em obter a atenção de estudiosos ávidos por lhe ignorar a maldição deixada num diário: "Deus fulmine todo aquele que escrever uma biografia sobre mim".

Infância de Barrie
Nono filho de família plebéia, Barrie logo cedo teve a malfadada missão de substituir no coração da mãe a ausência do filho predileto David, morto aos 13 anos num acidente de patinação no gelo. Em tudo diferente do heróico irmão mais velho, o menino Barrie, baixinho e frágil, nunca conseguiu seu intento, passando a infância toda a ouvir incessantes histórias sobre "o menino que nunca iria crescer".
É o que de alguma forma ocorre com Keiko Kai, personagem do romance de Fresán.
Ator-mirim escalado para viver no cinema o herói Jim Yang, protagonista de uma série de livros infantis mundialmente conhecidos (assim como Harry Potter), Keiko Kai foi seqüestrado por Peter Hook, o criador de Jim Yang, e é obrigado a ouvi-lo em sua obsessiva verborréia nostálgica a respeito dos paralelos possíveis entre seu próprio passado e a vida de J.M.
Barrie, além de toda e qualquer referência sobre a Inglaterra, desde os tempos vitorianos até os lisérgicos anos 60.

Recusa em crescer
Filho do líder de uma banda de rock e de uma groupie, Peter Hook parece ter caído dentro de um caldeirão (assim como o personagem Obelix, dos desenhos de René Goscinny e Albert Uderzo) cujo conteúdo em vez de poção mágica era LSD e, conforme sua mente trafega pelos milhares de afluentes dessa trip memorialista que, de maneira hábil, costura as fixações de Barrie pela infância e pelos garotos Llewelyn Davies (os inspiradores e destinatários da criação de Peter Pan), relata a história das suas obsessões pessoais, todas de alguma forma relacionadas à sua própria recusa em crescer.
"É por isso, penso, que o mundo transborda de gente de 40 anos convencida de que tem apenas 20, contradizendo inteiramente essa pieguice da "criança que levamos dentro de nós'", diz Hook ao pobre Keiko Kai em seu delírio irrefreável.
Controlando as rédeas do pensamento insubmisso de Peter Hook (não por coincidência o nome do Capitão Gancho), Rodrigo Fresán construiu um notável romance que celebra o ápice da liberdade inspirada pela infância, sem deixar de diagnosticar sua patética tentativa de ressurreição que a cultura pop de sugere. De acordo com Fresán todo adulto pós-68 é um garoto perdido. Não deixa de fazer sentido.


JOCA REINERS TERRON é autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).

JARDINS DE KENSINGTON     
Autor: Rodrigo Fresán
Tradução: Sérgio Molina
Editora: Conrad
Quanto: R$ 57 (520 págs.)

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