|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/romance
Fresán usa cultura pop para examinar criador de Peter Pan
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
A visão de Georges Bataille (1897-1962) sobre a
literatura como reencontro com a infância nunca teve mais adequada comprovação do que por meio da vida e
obra de James Matthew Barrie.
"Todas as crianças crescem
-menos uma", assim inicia a
saga de Peter Pan, epígrafe perfeita também para esse escritor
escocês nascido em 1860 e
morto em 1937, cuja existência
é abordada de maneira curiosa
em "Jardins de Kensington"
(ed. Conrad), do argentino Rodrigo Fresán.
Praticante de uma narrativa
caudalosa e afeita às digressões,
Fresán (revelado na célebre antologia latino-americana
"McOndo" e candidato a vir à
Flip 2007, Festa Literária Internacional de Parati) não se
conformou, entretanto, em escrever uma investigação ortodoxa sobre o esquisitão Barrie,
alvo já bastante pródigo em obter a atenção de estudiosos ávidos por lhe ignorar a maldição
deixada num diário: "Deus fulmine todo aquele que escrever
uma biografia sobre mim".
Infância de Barrie
Nono filho de família plebéia,
Barrie logo cedo teve a malfadada missão de substituir no
coração da mãe a ausência do
filho predileto David, morto
aos 13 anos num acidente de
patinação no gelo. Em tudo diferente do heróico irmão mais
velho, o menino Barrie, baixinho e frágil, nunca conseguiu
seu intento, passando a infância toda a ouvir incessantes histórias sobre "o menino que
nunca iria crescer".
É o que de alguma forma
ocorre com Keiko Kai, personagem do romance de Fresán.
Ator-mirim escalado para viver
no cinema o herói Jim Yang,
protagonista de uma série de livros infantis mundialmente
conhecidos (assim como Harry
Potter), Keiko Kai foi seqüestrado por Peter Hook, o criador
de Jim Yang, e é obrigado a ouvi-lo em sua obsessiva verborréia nostálgica a respeito dos
paralelos possíveis entre seu
próprio passado e a vida de J.M.
Barrie, além de toda e qualquer
referência sobre a Inglaterra,
desde os tempos vitorianos até
os lisérgicos anos 60.
Recusa em crescer
Filho do líder de uma banda
de rock e de uma groupie, Peter
Hook parece ter caído dentro
de um caldeirão (assim como o
personagem Obelix, dos desenhos de René Goscinny e Albert Uderzo) cujo conteúdo em
vez de poção mágica era LSD e,
conforme sua mente trafega
pelos milhares de afluentes
dessa trip memorialista que, de
maneira hábil, costura as fixações de Barrie pela infância e
pelos garotos Llewelyn Davies
(os inspiradores e destinatários
da criação de Peter Pan), relata
a história das suas obsessões
pessoais, todas de alguma forma relacionadas à sua própria
recusa em crescer.
"É por isso, penso, que o
mundo transborda de gente de
40 anos convencida de que tem
apenas 20, contradizendo inteiramente essa pieguice da
"criança que levamos dentro de
nós'", diz Hook ao pobre Keiko
Kai em seu delírio irrefreável.
Controlando as rédeas do
pensamento insubmisso de Peter Hook (não por coincidência
o nome do Capitão Gancho),
Rodrigo Fresán construiu um
notável romance que celebra o
ápice da liberdade inspirada
pela infância, sem deixar de
diagnosticar sua patética tentativa de ressurreição que a cultura pop de sugere. De acordo
com Fresán todo adulto pós-68
é um garoto perdido. Não deixa
de fazer sentido.
JOCA REINERS TERRON é autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).
JARDINS DE KENSINGTON
Autor: Rodrigo Fresán
Tradução: Sérgio Molina
Editora: Conrad
Quanto: R$ 57 (520 págs.)
Leia trecho
Texto Anterior: Crítica/romance: Henry James inspira nova obra de Begley Próximo Texto: Vitrine Índice
|