São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2007

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Crítica/romance

Henry James inspira nova obra de Begley

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

No início de "Naufrágio", último romance de Louis Begley, autor de "Sobre Schmidt" (que inspirou o premiado filme com Jack Nicholson, "As Confissões de Schmidt"), o protagonista confessa dúvidas profissionais e existenciais.
John North é um badalado escritor de romances que talvez façam mais sucesso de crítica do que de público. Ele acaba de ganhar um cobiçado prêmio das letras americanas, além de uma polpuda quantia de um grande estúdio, que comprou os direitos de filmagem de seu último livro.
Poderia estar nas alturas, mas, certa noite, por um motivo qualquer, resolve ler toda sua produção. Ele chega à conclusão de que nenhum de seus livros tem o mérito literário que a crítica lhe atribui: "Todos pertenciam à mesma linhagem enfadonha dos livros desnecessários, romances que não são ruins a ponto de dar vergonha, mas que levam a gente a pensar por que os autores se deram ao trabalho de escrevê-los".
Mas North não enfrenta apenas uma crise de criação. Seu casamento também sofre. Casado com uma médica, filha de uma das grandes fortunas de Nova York, North vive um tórrido caso com Léa, uma jornalista francesa que o entrevistou para a "Vogue".
Tanto o caso amoroso como as dúvidas artísticas e também as atribulações familiares são narradas por North a um desconhecido num café parisiense que tem o peculiar nome de L'Entre Deux Mondes. O nome, assim como uma série de menções de North a Henry James, parece apontar uma ligação com este escritor americano, embora James no todo abomine o registro confessional. Mas é preciso dar um desconto: o romance de Begley é, na forma, quase uma novela, e James escreveu grandes novelas com o uso da primeira pessoa, como "A Volta do Parafuso". Seu estilo é refinado e suas referências, preciosas.
O nome de sua namorada francesa, por exemplo, remete, como o próprio North sugere, à bíblica Lia, a filha que Labão impinge a Jacó, embora esse preferisse Raquel.
O destino de Léa, portanto, é ser sempre a segunda nos afetos de seus parceiros, e de fato ela parece relacionar-se apenas com homens casados que não pretendem abandonar a esposa. Mas a intertextualidade é ainda mais profunda. Assim como Lia foi rejeitada por Jacó por causa de seus olhos remelentos, Léa sofre de uma afecção da vista. Ela é míope, detalhe que posteriormente selará seu destino trágico.
O elo com James está nesses pequenos motivos ocultos e também na motivação secreta, não dita, que anima os personagens. Sabemos desde o começo que algo ominoso deve ocorrer.
Mas, a despeito dos queixumes de North, a tragédia é dos outros, que se deixam envolver pelos caprichos do vaidoso protagonista e ousam fazer frente contra seus privilégios.
North sempre fará de tudo para defender sua condição de "herdeiro de uma tradição americana testada nos campos de batalha, nas duas casas do Congresso e nas finanças".
Quanto à sua carreira literária, a produção de um novo romance, posto que porventura medíocre, contribui para perpetuar seu brilho baço no mundo das letras.


NAUFRÁGIO    
Autor: Louis Begley
Tradução: Sergio Tellaroli
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42,50 (240 págs.)

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