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DRAUZIO VARELLA
Por acaso, a vida
A visão de que a vida na Terra evoluiu só para originar o homem não resiste à análise detida
MUITOS IMAGINAM que a vida
na Terra evoluiu, a partir
de seres inferiores, com o
único objetivo de dar origem ao homem. Com o aparecimento de nossa
espécie, a evolução teria atingido
seu momento de glória.
Essa visão antropocêntrica não
resiste à análise mais superficial. Há
4 bilhões de anos, assim que a crosta
terrestre resfriou, já começaram a
surgir as primeiras bactérias, mães
das que estão aí até hoje aparentemente felizes com seu destino, sem
qualquer intenção de se tornar mais
humanas.
Se os primeiros hominídeos desceram das árvores nas savanas africanas há meros 5 milhões de anos,
houve 3,995 bilhões de anos de vida
sem nós. Imaginar que um ser superior precisasse de tanto tempo de
experimentação para obter indivíduos tão imperfeitos quanto nós é
fazer pouco de sua inteligência.
Se a evolução tivesse como finalidade atingir a "perfeição" (com a
criação do Homo sapiens), por que
razão nossos parentes mais próximos, com quem compartilhamos
98% de nossos genes, os chimpanzés, teriam surgido 2 milhões de
anos depois de nós? Seriam eles
mais evoluídos do que nós ou a prova viva de uma experiência fracassada de aprimoramento?
A seleção natural não defende hierarquia alguma nem os interesses de
qualquer espécie (os dinossauros
que o digam). Apenas privilegia os
indivíduos mais aptos, capazes de
vencer a competição pela sobrevivência para reproduzir-se e garantir
a presença de seus genes no repertório genético das gerações futuras.
Veja o caso do mais forte de nossos
parentes: o gorila. No auge da forma
física, um macho chega a pesar 200
quilos, mais do que o dobro do peso
das fêmeas. A força bruta lhe confere poder para acasalar-se com várias
companheiras e condições para defender a prole.
A oferta abundante de vegetação
rasteira nas regiões africanas em
que vivem os gorilas não cria obstáculos à vida em grupo. Eles vivem
em tropas formadas pelo macho
protetor, meia dúzia de fêmeas, os
filhotes pequenos e os juvenis.
Os biólogos sabem que a existência de machos grandes e fêmeas pequenas (dimorfismo sexual) é indicativa de disputa pela posse das fêmeas naquela espécie. Os gorilas
não fogem à regra. Machos solteiros
que atingem a plenitude física não
aceitam o celibato e passam a fustigar os mais velhos em seus haréns.
Os combates são violentos, como
atestam as cicatrizes que os gorilas
machos carregam, mas não são mortais: o perdedor simplesmente se retira, submisso. Quando o vencedor é
o desafiante, sua primeira providência é matar os filhotes pequenos, defendidos com unhas e dentes pelas
mães.
Voltemos à seleção natural. Teoricamente, os machos que assim agem
deveriam ser condenados ao ostracismo e ter seus genes eliminados da
comunidade. Se o comportamento
infanticida contraria os interesses
de sobrevivência da espécie dos gorilas, como consegue ser transmitido de geração para geração?
O comportamento se transmite
de pai para filho porque as fêmeas
que acabaram de perder suas crias
abandonam o macho incapaz de
protegê-las para seguir em companhia do intruso. Como param de
amamentar, menstruam e engravidam do novo marido, que passa seus
genes para frente e, com eles, a probabilidade de que seus filhos sejam
brutais como o pai.
Esse tipo de comportamento infanticida não é exclusivo dos gorilas.
Os leões machos, por exemplo, agem
de forma semelhante e as leoas reagem de maneira semelhante à das
fêmeas dos gorilas.
Desprover a evolução de qualquer
propósito intencional, apesar de ser
a única forma sensata e racional de
estudá-la, em hipótese alguma retira a beleza da criação. Muito pelo
contrário: pobreza é imaginar que a
vida surgiu sob o comando da varinha de condão de um mágico caprichoso.
Entender como as primeiras moléculas se combinaram aleatoriamente no ambiente primordial da
Terra que resfriava, até dar origem
às moléculas de RNA e DNA -dotadas da incrível propriedade de fazer
cópias de si mesmas, que souberam
fabricar camadas externas de proteínas e açúcares para protegê-las e,
assim, construir os primeiros seres
unicelulares, habitantes exclusivos
de nosso planeta por três bilhões de
anos que, mais tarde, se organizaram em formas cada vez mais complexas, numa explosão de biodiversidade, que, por uma sucessão infinita de acasos, chegou até você e eu,
leitor, neste sábado- oferece uma
visão muito mais grandiosa da vida e
nos ensina a respeitá-la.
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