|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERREIRA GULLAR
Visita à casa bem assombrada
Todos se foram, pensou ela, e não obstante estão de novo aqui como ausentes
|
A RECEPÇÃO era para comemorar as bodas de prata de um
casal amigo, mas de uma geração anterior à de Cláudia, e não se
daria na residência deles e, sim, na
velha e bela casa onde os pais e sogros do casal aniversariante, que haviam morrido alguns anos atrás. A
casa, no Cosme Velho, era ampla,
avarandada, com espaçosas salas e
muitos quartos, sem falar no quintal
plantado de árvores frutíferas.
Cláudia, porém, nada sabia disso,
pois não conhecera os pais da amiga,
nem mesmo a mãe, que morrera vários anos depois do marido. Júlio,
seu companheiro, sim, bem mais velho que ela, os havia conhecido, ainda que superficialmente e, por isso
mesmo, nunca tivera oportunidade
de visitar-lhe a residência. Mortos
os dois, a casa ficou vazia e, naquela
noite, depois muitos anos, abria-se
para a visita de estranhos, como
num ato simbólico. Era o que pensava Cláudia, ao ouvir do companheiro
a história daquela família e daquele
casarão em que entraria pela primeira vez aquela noite.
Essa expectativa a acompanhou
desde o momento em que, diante do
espelho, vestia-se para a recepção
das bodas de prata. Ao ajeitar a blusa
bordada à mão, que comprara especialmente para aquela noite, combinando com a saia comprida, também branca, mas de seda leve, e os
sapatos vermelhos, de inusitado desenho. Quando passou, de leve, o batom rosa nos lábios, tudo aquilo parecia-lhe um ritual de preparo para
o que ia acontecer dali a poucas horas na mansão do Cosme Velho, que
ressuscitaria aquela noite. Intuía,
mas não formulava em pensamentos claros nem muito menos em palavras, o que sentia à medida que se
aproximava a hora de ali chegar.
Por isso, nada disse a si mesma,
nada revelou do que temia ou imaginava. E, se não disse a si mesma,
tampouco o diria a Júlio que, alegre,
a recebeu à porta do edifício e a fez
entrar no carro.
- Você está linda!, disse-lhe ele ao
mirá-la de alto a baixo. Linda e surpreendente!
Ela, feliz, apenas sorriu e entrou
no carro. Pouco ou nada falaram até
chegarem ao Cosme Velho, que não
ficava longe. Quando, enfim, se viu
diante da entrada da casa, ela sentiu
como se fosse penetrar um espaço
outro, uma realidade mágica, imprevisível. Naquele momento, outro casal conhecido também chegava e,
juntos, subíramos degraus da escada
que conduzia à varanda, acesso para
a sala principal.
Foi precisamente quando entrou
nessa sala que Cláudia se deu conta
da aventura que começara a viver,
transportada a uma outra dimensão
do real. Afastou-se de Júlio e das demais pessoas para, em passos lentos,
chegar até a parede do fundo da sala,
onde se viam agrupados vários quadros e antigas fotografias emolduradas em vidro. Logo percebeu, no
centro deles, uma foto maior, amarelecida, de um casal jovem que sorria: são os antigos donos da casa
-pensou ela- que aqui sorriram e
eram agora apenas imagens semi-apagadas no papel da fotografia, sob
uma lâmina de vidro.
Deteve-se vendo as demais fotos,
enquanto um sentimento incontrolável a arrebatara: eles viveram nesta casa, estiveram nesta sala, conversaram, sorriram, se amaram e agora
não estão mais aqui nem em parte
alguma do mundo. Nem eles nem as
outras tantas pessoas que, em noites
como esta, noutras festas, aqui estiveram. Todos se foram, pensou ela, e
não obstante estão de novo aqui como ausentes. Essas idéias passavam
por sua mente, sem que ela as formulasse claramente, movendo-se
na direção de um conjunto de poltronas de estofos bordados e braços
esculpidos. Pensou ver, sentadas nelas, pessoas que sorriam e conversavam sem que suas vozes e risos se fizessem ouvir e que se levantaram e
passaram vaporosas através dela até
desaparecerem na varanda aberta
para o quintal escuro.
Cláudia passou para uma segunda
sala, igualmente decorada com quadros, cortinados e móveis antigos.
Finalmente, viu-se andando por um
longo corredor, ladeado de portas e
mais portas. Como se fosse arrastada para lá, entrou no banheiro -o
lugar onde se chora, pensou- deparando-se com um grande espelho
emoldurado sobre uma pia de mármore rosa. Mirou-se nele, como se o
fizesse por tantas mulheres que nele
se miraram para retocar a maquiagem e ajeitar os cabelos. Demorou
mirando-se, enquanto seu rosto se
mudava em outros rostos que surgiam e sumiam no abismo de cristal.
Andou até a banheira vazia e nela
se deitou, abraçada a um buquê de
rosas que apanhara de um jarro sobre a pia. De vestido, sapatos e bolsa,
chorou convulsivamente, enquanto
no resto da casa as pessoas se divertiam. Chorou a vida que não vivera.
Texto Anterior: Crítica: "Bicho de Sete Cabeças" valoriza o marketing Próximo Texto: Exposição: Mostra da Pirelli termina hoje no Masp Índice
|